sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Abre as asas sobre nós.

Você é o que você pensa.

Eu já ouvi essa frase inúmeras vezes. E concordo com essa idéia.

Porém, o que é que você pensa? Será que você pensa mesmo, ou o seu pensamento é a linha final do pensamento de outro?

No nosso ambiente ocidental ocidentalizado, estamos acostumados a valorizar e dar como certas a liberdade de criação e expressão individual. Mesmo no Brasil, onde a desigualdade social mina a formação intelectual e subrai possibilidades e oportunidades da grande maioria, a criatividade e a comunicação fazem parte de um conceito de contemporaneidade e sofisticação que todos, a despeito de renda ou outra classificação, assumem como virtude e desejam viver.

E eu concordo com isso também. Criar e expressar são valores inestimáveis, e as idéias, transformadas em atos ou palavras, vem há dezenas de milênios transformando cada vez mais o ser humano naquilo que ele é, para bem ou mal – são nosso grande patrimônio enquanto espécie. Talvez o único, de fato.

Mas.

Eu não assisto TV. No entanto, não preciso sair de casa pra conhecer a influência dessa e de outras mídias sobre o pensamento e comportamento dos meus concidadãos. Basta olhar pela janela de casa. A forma como se vestem, como andam com seus filhos. A forma como se beijam (ou não se beijam, aqui nesse país estranho). Os olhares, as palavras, o sexo. Tudo é absolutamente permeado e moldado pelos modelos expostos (impostos?). Ninguém é livre, na verdade. A liberdade é uma farsa. Mas o cerceamento da liberdade não carece de violência ou imposição – ele está para o ser humano como a água para o peixe – o peixe não deseja a água, ele simplesmente vive nela e não sabe (e nem deseja) viver fora. O ser humano simplesmente é aquilo que ele moldou como estrutura social, ele é humano por que é social – e dentro dessa estrutura, a liberdade é tanto mais linda quanto mais utópica. O peixe não percebe a água, e se vê absolutamente livre dentro dela. Claro – que outra opção ele teria?

Antes da TV, antes da globalização, não era assim? Talvez não exatamente. A influência não vinha de um tubo de vidro cuspindo pensamentos pré-formatados. Vinha da boca de outras pessoas, de livros, de professores, de exemplos nacionais. Mas os pensamentos, ainda que diferentes dos de hoje em dia algumas vezes, eram igualmente pré-formatados. Apenas, por conta do regionalismo intransponível, essas idéias eram menos homogêneas.

Na tribo indígena, no Alto Xingu ou na margem do Eufrates, sem TV ou rádio, as mentes eram da mesma maneira ordenadas de acordo com pré-concepções adequadas ao modus vivendi e status quo. Nada muito diferente.

Por isso, continua a pergunta: você é o que você pensa? Ou estão pensando por você? Que idéia realmente sua, que criação sua e expressão apenas sua veio à tona até hoje? Raras vezes essa pergunta vai ser respondida com um exemplo que faça jus. Você pode me dizer, e vai estar certo: mas, Daniel, é claro, todas as nossas criações pessoais são somas e traduções e sínteses de idéias que já existem, ninguém tira algo do nada. Sim, mas não é disso que eu estou falando. Não estou falando de criar arte, de criar um novo pensamento filosófico, uma nova solução para os problemas do mundo. Estou falando de coisas simples. Da maneira como olhamos a pessoa ao lado no ônibus, ou os pedestres através da janela blindada do carro. De como registramos internamente o mundo, a gente, os eventos.

Alguma vez você já teve a sensação de que aquela idéia que surgiu automaticamente na sua cabeça ao se deparar com algo novo (seja conhecer alguém, receber uma sugestão diferente para resolver um problema, viajar e ver outra cultura), aquela idéia que você sempre tem sem saber de onde vem (e que se assemelha no mais das vezes a um escuro NÃO) não é necessariamente sua, que ela foi plantada ali por anos de educação (ou des-educação) formal, de bombardeamento midiático, de um ataque maciço incessante de fórmulas pré-concebidas e convenções? Ora, mas eu não, eu sou muito crítico, eu tenho muita sensibilidade, eu sou muito intuitivo, eu não julgo as coisas, eu deixo rolar, eu eu eu.

Preste atenção: não há EU. Você é o que fizeram e estão fazendo com seu pensamento. Você é qualquer outra coisa, menos você absolutamente. E quando eu digo “fizeram”, tenho que me corrigir e dizer “fizemos e estamos fazendo com o nosso pensamento”. Ou não somos a sociedade, ou não somos nós os responsáveis? Ou não somos nós os cordeiros, afáveis e cordatos – desde que nos dêm nossa novela, nosso programa de domingo-pizza-fantástico (ou cinema, para os que podem pagar). Nos basta o Jornal Nacional, a Folha de São Paulo, a Veja. Mas não, Daniel, eu leio, eu leio muito. Leio livros, outras revistas, sou antenado. Antenadíssimo, meu caro, você está antenadíssimo. Provavelmente você vai de uma hora pra outra regurgitar o que leu em cima do meu cachecol. Vai chegar com máximas políticas, com pensamentos filosóficos – que você pode até conhecer a fundo. Mas me diga algo novo, seozé. Você é mais um títere – só é mais paramentado – tem mais articulações.

Desculpe. Não há saída. Eu não tenho uma pílula vermelha que vai te arrancar do sistema.

Voltando: o peixe não percebe a água, e se vê absolutamente livre dentro dela. Claro – que outra opção ele teria?

Evoluir, talvez.

Foi um peixe igual a outros que saiu da água um dia, um instante, e sem perceber começou com tudo o que temos de vida sobre a terra (a não ser que você seja criacionista, – por favor me diga se for, eu adoraria conversar pessoalmente – você provavelmente aceita essa hipótese como a mais provável para explicar o passado), um peixe que saiu: literal e metaforicamente podemos dizer que transcendeu.

Eu não tenho a pílula vermelha, mas talvez, eu tenha uma sugestão. Eu não sou nenhum sábio, nenhum guru, e essa idéia não é nova, nem é mais minha do que de muitos outros que já pensaram a mesma coisa. Mas é um caminho talvez interessante.

E é uma sugestão muito simples: preste atenção.

Não se preocupe, não vai durar muito – a vida é uma só e não demora. Você consegue, não é tão complicado. Com um pouco de treino vira um hábito.

Preste atenção ao momento. Ao presente – preste atenção ao que está em volta. Abra o olho. Preste atenção – o que está ao seu lado não é pré-concebido. É apenas nesse momento que está acontecendo – das zilhões de possibilidades intermináveis, essa que está aí, no momento, é a que está no foco. Ela é simples, insubstituível e essencial. Então não desperdice, olhando como se já esperasse. Você não esperava. Absorva o momento, esteja inteiro ali – onde mais você quer estar? Onde mais você pode estar?

Isso é apenas não perder a oportunidade de usufruir daquilo que está sendo dado.

Não há como pré-conceber o presente. O instante real, aquele que está sendo vivido, aqueles doze segundos entre o que já foi e o que vai ser, não há como julgar. Ele não é uma expectativa, ele não é uma consideração ou uma conclusão, ele não permite lentes ou truques de espelho – por isso ele é o real. Preste atenção nele, sem vesti-lo das cascas velhas que nos ensinam a usar para cobrir o que é indesejado – o preconceito. Deseje o presente. O presente nu.

Creio que isso nos levaria muito além.