domingo, 13 de maio de 2007

O Canto do Jardim

O senhor veja. Pois não foi que eu um dia abri a porta de casa, e veja que eu ainda era menino, estou ali, na soleira, o pé cascudo com aqueles dedos separados na pedra, então que eu vi. Tava ali, era um brotinho nem era nada ainda, era só um talinho verde uma coisa pequenininha mesmo. No meio do jardim, até nem bem no meio, um pouco de canto assim. Olhei assim praquele brotinho e foi que tive a primeira epifania. Um menino que nem eu ali, ora se pode crer que tenha epifanias, mas veja que eu tive e foi a primeira de algumas tantas que vieram me gorgolejando de lá pra cá. Pois bem que eu fui e me acocorei perto do talinho verde e dobrei o pescoço pra ver mais de perto. Era uma paixãozinha que tava me vindo, uma curiosidade, no meio daquela terra fofa e cheirosa de poeira e titica das galinhas da minha avó aquele brotoquinho de nada. Pra ver melhor deitei que o chão tava meio seco, fiquei ali medindo com o foco do olho a distância do talo pra bica, do talo pra goiabeira no fundo, do talo pra o barranquinho, do talo pra porta, revesgueiando o olho pro talo ficar embaçado. Levantei.
Fui buscar um copo de água pra dar pro talinho, um de geléia que ficava na cozinha em cima da prateleira de tábua, que era o que eu preferia naquela época. Hoje gosto de outros vidros, mas ali aquele copo tinha uma redondura na borda que eu gostava de morder com o beiço, e parece que o gosto de barro da água da moringa que eu tomava vinha daquela redondura, não do barro da moringa. Era bom que só.
Deitei a água de levinho na plantinha. Não é que eu não soubesse que a plantinha já tinha lá seu quinhão de água nela mesma, senão daquele tamanico não havia de ter brotado sem água, mas era por que eu queria eu dar água pro meu brotinho. Por que ali virou minha a plantinha. Não era como se fosse os brinquedos feferentos da minha irmã que a gente às vezes brigava pra ver de quem era e dizia é meu é meu, era uma outra coisa, não era que eu queria aquela planta pra mim. Como se eu fosse vender, não era isso. Era como se a planta tivesse nascido em mim, na minha pele. E eu tinha uma pele lascuda, uns arranhões e umas perebas, bem didático pra uma planta nascer mesmo. Ia ver que a planta acabava até me limpando daquelas coscorentices e me deixasse limpo. E isso ela fez mesmo, mas foi muito depois daquilo.
Um dia e já viu e era um pezinho de mato. Não foi uma vez só que eu salvei o matinho da gadanha do pai, que vinha limpando o terreiro, não queria sujeira, eu fui e fiz birra e parecia um moleque ranhento de barra de saia, chorando que tavam matando minha árvore. Foi feio, mas pelo menos não matou.
O senhor aceita um golinho? foi um fiscal que me deu. Não sei por que tem esses fiscais por aqui. Mas é boa que só. Deve ser por que andaram que mataram um fiscal aí uns anos atrás, e falaram umas bizarrices e eu não gostei nada nada. Agora os fiscais vem tomar café aqui comigo e tem uns mais até mais simpatiquinhos igual a esse aí que deixou essa garrafa de cachacinha boa. O homem é bom, o senhor não acha? o que estraga o homem é as mesquinheras.
Mas pois, foi que era um mato por um tempo.
Então veio a outra epifania, abri a porta noutro dia e tinha uma flor. Mas não era uma flor, dessas flores mais desabusadas que a gente vê por aí inclusive na fazenda dessa senhora que o senhor falou que cria flor e eu mesmo já lhe fui ver a flor dela e outras coisas que ela tinha pra mostrar. Digo isso de uns bezerros que ela tem lá também. Acho. Acho, por que não vi, por que não pude ver por que foi uma charla boa a que tivemos sobre flores, o senhor vê por aí que eu sou dado a poesias mesmo. Mas que a senhora essa tem outras coisas lá na casa dela, tem sim senhor. Ah, o senhor concorda, não é?
E tem quem vá e diga que eu que matei o fiscal. Eu não mato ninguém, o senhor me imagina matar alguém, tome tenência. Sente-se. Por favor, o que é isso, não é nada não, ainda é cedo, olha lá como é que tá bonito praqueles lados que o vento bate. Não, fique-se muito a vontade. O ultimo corregedor que apareceu aqui em casa também faz muito tempo, mais até do que o fiscal. Não se sabe o que foi dele, sumiu, nunca mais voltou. Era um pouco antipático, o senhor veja. Não fica bem pra um corregedor a antipatia. Aliás, pra ninguém, não estou certo? Ah, morreu? Mas veja, que coisa heim. Acontece, nestas bandas o vivente tem que estar bem de amigos senão quando menos se vê, vai e ninguém sabe, a boca tá cheia de formiga. E o senhor sendo corregedor.
Mas isso não é assunto para esse fim de tarde, ave-maria.
Era uma flor que o senhor só vendo. Primeiro vinha o cheiro, um cheiro azul, que estufava nos buracos dos narizes popocando que nem baiacu, quase um acinte, era um cheiro que era um despautério. Mas não estragava, que nem uns perfumes franceses de bosta que as mulheres usam por aqui. Era cheiro de flor que ia e vinha e parecia que a gente nem tinha acordado, mas a gente tinha e o olho também revirava. Aquilo me subiu pelas pernas ou me desceu pelo peito eu nem não sei muito bem, Sei que foi me dando uma fortaleza nas partes, eu era um garoto o senhor veja, um garoto a gente quando é a gente tem umas coisas que vão forminganholando pelas bolas aquele cheiro que pelamordedeus eu falei e corri pra dentro que me deu medo de pecado. Foi dias de medo das almas. E não queria nem passar na frente da rua da igreja. Agora eu dou risada, mas sou muito respeitador, mas dou risada é de eu menino todo cheio de medo e aquela estrovenga se açulando cada vez que eu sentia o cheiro. Eita.
Mas eu ia e vinha com a flor cheirosa na cabeça, ia deitar e ficava lá cheirando. O senhor sabe como é menino, não sabe? Uma palhinha o bicho já tá de pinto duro. Eu na minha cama e aquele cheiro tinha um negócio que me deixava ali, na gastura de medo de pecar. Hoje nem ligo pra isso, meus filhos mesmo que hoje são tudo homens já, criei solto, pra ir exercitando desde menino a imaginação. A gente que é mais imaginativa é a que tem mais solução pros desencalhes, o senhor não concorda?
Era mais medo mesmo do pecado, haja vista. O senhor sabe o que Deus fez com Onan, pois então, e o padre vivia falando nessas coisas. Hoje eu sei que o padre também não era nada de nada de grandes coisas, um papa-hóstia aquele padre, que deus o tenha, um safado que gostava de passar a mão na bunda dos meninos e sei lá mais o que que ele fazia com uns e outros meninos que deixavam. Eu não que em mim ninguém lascava. Só a tal da flor.
Lascava que lascou mesmo. Passei uns dias só olhando de perto e de longe a flor, enrabixado daquela beleza, toda delicada, parecia uma mulher dessas bonitas que a gente não vê, e quando vê é na revista e a gente não sabe se existe mesmo ou não. Eu mesmo acho que não existe.
Pois os dias passando e foi que eu cheguei em casa uma tarde e entro pelo corredor, fui deixando minhas coisas, passo pela sala e nem percebo mas percebo e viro e vejo e olho e quando eu vejo tá ali a flor cortada enfiada num vaso.
Ela tava meio de lado, caidinha, a minha flor ali, cortada e caída, o senhor sabe o que é doer no peito uma coisa funda, o senhor me entende, eu não sei se o senhor me entende, estou dizendo coisas que nem sei se deveria, no fim. Eu corri pro meu quarto, me tranquei lá, naquela hora eu queria desviver de vez, explodir de vez, quem é que fez uma malvadeza daquelas tamanhas, quem é que mata uma flor dessa assim, ainda mais que era meu aquele mato e todo mundo sabia.
E choveu nesse dia.
Choveu dias e choveu muitos dias eu me lembro, por que meu pai chegava de galochas e tudo estava cheio de barro e lama. Quando dava aquela estiadinha a gente olhava pela janela a cerração, um cinza pardolento de que parece que a foto da paisagem vai chorar de novo. Uma melancolia, eu nem saia mais pra ver nada, nem vi o que foi da flor, esqueci tudo, não olhei mais o jardim nem nada.
Um ano inteiro, que coisa. A gente lembra umas coisas. Mais um pouquinho? É boa mesmo né? Lhe apresento o rapaz um dia, trabalha nessas paragens, é fiscal. Não é corregedor, não tem a mesma gabardia, o senhor sabe, o senhor é um homem estudado, senão não chegava onde está. Eu sou um homem simples daqui, o que eu sei é de coisas que aprendi aqui mesmo, e de umas viagens que minha mulher me carregou pelo mundo, ela sim sabe muita coisa. Naquela época ninguém era páreo pra ela, essa bicha é danada, é braba mesmo, um colosso. E era uma moça muito bonita, tenho uma sorte danada, sabe? Tudo foi deus que me deu, tenho muita sorte.
Passou o ano, foi embora aquela chuvarada. Era tempo de férias, eu estava em casa com o meu avô, ele trazia umas revistas, uns livros de charada, umas coisas que menino fica doido, e eu gostava dele, sabe? E ele ali bem naquele canto, eu mais pra cá, ele me pediu pra pegar um copo de água na cozinha eu fui e estou indo passei pela porta do jardim e senti um cheiro que já ia me derrubando que me tonteou. A flor! Mas não era bem tão pouco só isso.
O que me brilhou é que a plantinha de antes agora tava grande, tava da minha altura, tava fazendo sombra, e tava pocada de flor. Muitas dúzias. Tudo luzindo belezas naquele sol, parecia que se mexiam, era uma ciranda, era um carrossel de circo. Eu parei estaqueado.
Esqueci o vô na sala. Epifania, epifania. Parecia musica. E o meu peito foi se rasgando no meio, tava que ia chorar, mas eu já não chorava mais naquela época, ficava feio, não tinha ninguém olhando, mas eu não chorei. Desci bobolento da soleirinha, andei até o pé de flor com uma zoeira na cabeça e casquei a mão de polpa cheia num talo duma daquelas flores, igual uma criancinha pegando um doce.
Pra quê. Espremi com força uma dúzia de espinhos na palma. Doeu quente e pastoso, aquele sangue começou a escorrer e não parava, escorrendo pelo talo e eu não largava a flor, não queria largar, não podia largar. Fiquei ali, a mão segurando a flor com força, o olho embaçado de dor e uma outra coisa, uma raiva, um amor.
Meu avô chegou na porta e me viu, e foi ele que me tirou dali. Segurou minha mão com calma e me fez largar, aquele rio desaguando aqui e ali. Eu entrei de volta, pingando. Sentei na cadeira de palha da cozinha, enquanto o vô ia buscar pano e sabão pra lavar meu braço.
Só que me subiu uma quentura no sangue, um desarrazoado, levantei e saí pro lado do paiolzinho, onde ficava a lenha. Agarrei no machado e voltei num pé só, já dando de cima pra baixo no tronco. Não sei quantas dei, até meu avo me segurar. Mas foi bastante pra derrubar, deixar no toco. Ficou desbeiçadinho prum dos lados, chorando uma seiva azulada. Eu chorava também, por que foi me dando o desespero. Aquele resto de árvore, minha árvore, minha flor, tava tudo no chão, misturado numa papa de sangue e seiva azul e poeira e titica. E tava acabado.
Saí a pulso dali, meu pai chegou logo depois. Ainda levei algumas no lombo, que não tinha perdão. Na outra semana me mandaram pra cidade. Minha mãe achou bom me colocar num internato, não por causa da árvore, árvore a gente tinha muita, mesmo que ela gostava daquela flor, mas embora que ficasse muito distraída quando sentia o cheiro. Era por causa de estudar mesmo, eles achavam que eu estava sem estudo. E estava.
Tome mais uma, vou pedir pra fritarem uns lambaris, o senhor aprecia lambaris? Veja essa vista, olhe que eu já estou passadito, mas ainda tem umas horas que eu vejo esse escuro vindo dali pra cima daquele roxo claro, essa maravilha toda desse ar que cobre tudo devagarinho, tem vezes que com a lua então. Eu me lembro de tanta coisa. A gente fica mais quieto quando fica velho. Dá um retumbo por dentro do peito, não dá?
Voltei, já tinha casado, os meninos já tinham nascido, menos a menina que nasceu depois. Já tinha anel, não uso mais anel, acho que fica uma coisa, sou um homem simples. Voltei um pouco antes da mãe se ir, o pai já tava ido, a casa vazia vazia.
O jardim estava um mato. Mato alto, não se via pelo meio. Você podia dar a volta e não ver o outro lado.
Mandei limpar.
No meio da tarde o rapaz veio me chamar, estava cioso, tinha uma coisa pra me mostrar. E fez que fez que eu fui e vi lá, no meio do jardim. Tava lá, grande, folhuda. Carregada de flor.
Desculpe se eu choro, é que a gente vai ficando quieto assim. Mas não é de silencio, é das coisas.
É muitas coisas.