sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
As Minhas Mulheres
Eu não poderia deixar passar em branco um dia como hoje. Poderíamos pintá-lo de escuro nebuloso, ao anunciar a morte do ícone máximo da geração pin-up americana, Bettie Page. No entanto, a imagem da moça seminua, com suas carnes duras e voluptuosas, sorrindo convidativa em fotos e desenhos só pode trazer ao pensamento um dia de sol e cores vibrantes, de alegria e sensualidade. Há quem não entenda nada e veja nos ensaios de Bettie Page uma vulgarização banal, a despersonificação da mulher – que na esteira da sensualidade ingênua das pin-ups dos anos 50 foi subitamente institucionalizada pela revolução porno-editorial de Larry Flint nos anos 70 – mas esses não entendem nada. A pin-up é uma personagem típica do imaginário americano do período pós-guerra (ainda na segunda guerra, os aviões de combate recebiam na fuselagem a pintura de suas musas, pin-ups sorridentes em poses provocativas).
Sua atitude é, no mais das vezes, sexy e pretensamente ingênua. Vestidos que levantam com o vento, cachorrinhos puxando biquinis, penteadeiras com espelhos indiscretos, sempre motivos bem-humorados, sensuais e de certa inocência romântica - ainda que inevitavelmente provocantes. E antes do Photoshop. Antes da lycra, da cirurgia plástica fast-food e da ditadura do alface e do chá das sete ervas... quando mulher podia ter carne por cima dos ossos.
E Bettie Page é a representação máxima dessa sensualidade. De um tempo em que não havia AIDS, em que o amor livre ainda não havia confundido as pessoas, em que a TV não abundava e a excitação, dada a forte repressão e os tabus reinantes, acontecia com meras sugestões sutis. As pin-ups, nas folhinhas de calendários, postais e fotos de revistas, eram as grandes subversivas, atacando com seus sorrisos e suas coxas grossas, seus traseiros empinados e seus mamilos pontiagudos a moral hipócrita da família americana média. Eram o que os rapazes das oficinas, os vendedores ambulantes, os entregadores e todos os jovens chamavam de “cheesecakes”.
Marilyn Monroe está entre elas. Ingrid Bergman, Ginger Rogers, Mae West, Marlene Dietrich, a icônica Bettie Grable, Joan Crawford, Ava Gardner, Judy Garland, Rita Hayworth, La Bardot, Farrah Fawcett, Daryl Hannah, todas foram, em suas épocas, pin-ups em algum momento. Isso pra citar algumas mais famosas.
Pessoalmente, a imagem da pin-up sempre foi pra mim o que, dentro das minhas descrições visuais do corpo da mulher, melhor define meu objeto de desejo. Creio que é uma tatuagem mental pré-adolescente – da época em que eu me fascinava com aviões de guerra e suas lendas. Ficou na minha mente a personagem de Rocketeer, desenhada nos anos 80 e criada à imagem e semelhança de Page.
Eu era menino e via as fotos de bombardeiros e caças e sempre me apaixonava pelas mulheres desenhadas abaixo das cabines dos pilotos, as fotos das atrizes daquela época, com seus olhos baços e distantes. Adolescente, eu queria me apaixonar por uma mulher assim. Aliás, não mudei nada – sou incapaz de conter um suspiro diante do rosto delicado de Ingrid Bergman, um olhar cuja característica aprendi a definir em francês aos 15 anos e pela sonoridade creio fica melhor que em outras línguas – lointain. Lointain parece que vai levar uma eternidade pra ser atingido – e aqueles pares de olhos mirando através do estúdio de fotografia, pareciam olhar as estrelas. Provavelmente olhavam para o mesmo ponto que os bicos dos seios das alegres e saltitantes pin-ups, atravessando meu cérebro no caminho e deixando um rastro cheiroso de expectativas e fantasias.
Mas eu continuo o mesmo menino, parece. Felizmente.
Até a semana passada, na minha cozinha na Alemanha, aterrorizava meu café-da-manhã a imagem bizarra da atraente pin-up gigante de "The Attack of the 50ft Woman". Poster A de filme C. A cozinha eu deixei pros alemães, mas a giganta eu trouxe comigo pra São Paulo.
Bettie Page deixa a terra e uma legião de fãs, muitos dos quais com espinhas na cara e cabelos na palma da mão, afogeados na ânsia do prazer solitário – e outros como eu, que viam e vêem naquele sorriso sem vergonha uma energia feminina indefectível, uma coragem de desfazer nós e tabus com bom humor, a delicadeza brejeira e perfumada – uma flor que desabrocha eternamente, intensamente.