sábado, 16 de fevereiro de 2008

Janeiro. Em fevereiro.

ANO NOVO EM WUPPERTAL

31 de dezembro 2008. Reveillon. Incrível que em Wuppertal tenha sido tão colorida a festa. Da minha janela não dava pra ver tanta coisa, mas com certeza muita fumaça colorida e uma barulheira infernal. No bom sentido.

À uma e meia da manhã lembrei que tinha deixado minha passagem no estúdio. Não seria problema, se eu não tivesse que sair as 7:00 de casa para viajar. Quem viaja no dia primeiro? Ou não tem nada pra fazer, ou não tem dinheiro ou é meio doido. Ou tudo meio junto. Um monte de turistas suecos voltando pra casa, alguns africanos voltando para seus empregos na beira do mediterrâneo, outros destinos que eu não tive atenção para notar, com tanto sono. Mas antes,

Peguei a bike e desci pro estudio, desviando dos cacos de vidro das centenas de garrafas de todos os tipos jogadas na rua e na calçada pelos felizes nativos. Menos três graus. De bike. Na descida. OK. Peguei a passagem e caminho da roça. No comecinho da subida, puufffffffff. Caco de vidro fiadaputa.

É assim: um trem pra dusseldorf. Espera. Ônibus para Weeze. Espera. Avião para Girona. Espera. Ônibus para Barcelona. Espera. Metrô para Liceo. Encontra o Rafa e anda um tico. É assim que vai daqui a Barcelona pela Ryan air. Vale a pena? No fim das contas, não sei, cheguei no fim da tarde, quase um dia de viagem. Mas que sai mais barato, sai. Não muito, mas sai.

BARCELONA

Barcelona é aquilo que imaginamos que seja. Uma maravilha caótica, quente e simpática, entupida de turistas nessa época do ano. E creio que em outras épocas também. Afinal, se estamos no inverno (ainda que nada comparável ao meu retiro polar em W’tal), faça o quadro do verão. Lindo. Eu me sinto em casa. Aliás, me parece que conheço melhor a cidade do que a outra, onde vivo. Ao menos decerto andei muito mais em Barcelona do que aqui. Fiquei na casa do Rafa no Raval, perto do Teatro do Liceo, num desses apartamentos decadentes absolutamente adoráveis, numa das vizinhanças mais barra-pesadas da cidade. Pra um paulistano, ainda é café pequeno. A uma quadra da Rambla, onde os preços, já altos, dobram. Ou é o que me parece. Por que tudo lá custa muito mais do que em W’tal, que por sinal descobri ser uma barata e pacata cidade. Nada como comparações, não? (segundo Einstein nada existe no universo sem que algo se mova – ou seja, nada existe sem parâmetros. Relatividade básica, citação de balcão de bar).
Um dia só, infelizmente, mas o bastante para dar um belo passeio, acompanhado de minha querida amiga Micaela Ameri, cujas observações sobre a cidade e seus habitantes adicionaram proveitosos conhecimentos ao meu cabedal. Pelo menos já sei dizer que me chamo Daniel. Em catalão. Mas não sei como se escreve, óbvio. A frase, não o nome, óbvio.

Fomos à Fundação Joan Miró, ver uma exposição de um artista japonês que ela queria muito ver. Vimos uma exposição de uma japonesa – o japonês já tinha ido embora. Nada especial, na minha opinião. Mas sempre há o que se lembrar, e para o caso havia um desenho de um rosto de menina com um brilho especial nos olhos, tão absolutamente japonês e pop, mas tão insolitamente marcante. Chama-se Erina Matsui, a artista.

Depois um bom almoço, mais umas voltas pela cidade, uma noite sem sono e a saída para o aeroporto às 4:30 da manhã. A grande vantagem de ter saído tão cedo de barcelona foi, por causa do trajeto que me levava a uma baldeação obrigatória em Heathrow, o maravilhoso alvorecer sobre os Pirineus, a 10 mil metros de altura, com um dia sem nuvens se anunciando gelado sobre as neves inóspitas daqueles picos. A companhia aérea é muito confortável, tenho que admitir. Para uma lata de sardinha voadora inglesa, até que não nos sentimos mal acomodados – e olhe que eu tenho as pernas compridas da genética alemã.

Quando passamos a linha litorânea brasileira, era dia ainda. Um longo fim de tarde. De repente, no horizonte, como se fosse um enorme incêndio, um rio de fogo alaranjado espoucava em rasgos cintilantes, correndo numa mancha movediça de um lado a outro da minha visão. Era o São Franscisco, que refletia a luz da tarde. Mas visto de 10 mil metros de altura, em toda a sua exuberante magnitude. Não sei quantos no avião estavam assistindo ao espetáculo. Mas foi impressionante. Durante horas, enquanto o sol baixava, o rio mostrava-se entre as poucas nuvens como uma fita espelhada, ora mais fino, ora mais grosso, apontando o norte e o sul. De vez enquando, um raio de sol refletia num movimento de água qualquer e era como se infinitos peixes-luz saltassem sobre a superfície. Dessas imagens indescritíveis e que a gente guarda como pequenos relicários.

BRASIL

Buf. A aeromoça abriu a porta do avião e eu senti aquele bafo quente, um misto de ar salgado e molhado, e terra e poluição e cheiro de obra, asfalto. Brasil, São Paulo. No meu interior, várias sensações gritando numa enorme assembléia de loucos.
Cada uma querendo atenção para si. Mas basicamente, a sensação de recobrar o domínio. Como se de novo eu fosse senhor da situação, algo que estivesse perdido há algum tempo. Era noite.

Eu ainda não estava totalmente situado. Muito cansaço da viagem, o fuso, a ansiedade de usufruir cada instantezinho logo no momento em que desci a escada do avião. Claro, ainda tinha o percurso Cumbica – São Paulo, pra percorrer de ônibus. Por que taxi é um esfolo. Foi ótimo, esse ônibus.

Éramos como quatro ou cinco pessoas no ônibus depois de deixarmos a maioria dos viajantes na rodoviária do Tietê, eu, o motorista e duas ou três mulheres. No caminho da rodoviária, estava sentado ao lado de um sujeito que falava ao celular: não mãe, não deu certo, não sei, o advogado dela vai entrar com os papéis, sim, na alemanha, é, agora cada um pro seu lado. Estava muito triste, parecia. Tinha a voz de frustrado, acho que seu casamento com a alemã tinha se desfeito.
Uma das mulheres então chegou para o motorista. O diálogo foi mais ou menos o que se segue:

- Oi, o senhor vai fazer qual caminho?
- Você precisa descer em algum lugar?
- Você passa na Floriano?
- Eu não vou pela Floriano, desço direto pela Juscelino. Você precisa ficar na Floriano?
- É, na Bandeira Paulista, mas tudo bem, não tem importância.
- Bom, a empresa não permite que a gente deixe os passageiros antes do ponto, sabe? É perigoso. E depois, lá na Juscelino tem os taxistas, já são conhecidos, tem mais gente. É mais seguro. Ainda mais agora à noite.
- Tudo bem, tudo bem, então.
(um minuto de silêncio)
- Mas eu posso fazer outro caminho, de repente eu vou aqui pela Floriano, e viro depois na João Cachoeira. Você fica onde?
(Nesse momento, ele virou à esquerda na Floriano, saindo do caminho que a empresa tinha prescrito. Eu fiquei espantado de como eu havia me tornado alemão nesse tempo. Seria impensável, absolutamente, um diálogo como esse num ônibus alemão. Quanto mais, o motorista aquiescer e mudar o caminho pra ajudar a passageira. Esse diálogo não existiria por que a passageira NUNCA faria a pergunta. Se fizesse, o motorista – que nunca esperaria isso – diria um ríspido NEIN. Se ele além disso topasse a conversa, apenas para explicar os motivos ou ser gentil – coisa impossível – ele NUNCA, DE MANEIRA NENHUMA pararia fora do ponto ou, coisa inimaginável, mudaria seu percurso. E eu estava acostumado com isso).
- Bandeira Paulista, ali, na esquina, está ótimo. Muito obrigada. Eu posso abrir o porta-malas?
- Deixe que eu te ajudo, um minuto.

Foi assim que eu cheguei no Brasil.

Meu quarto azul, o café-da-manhã de casa, a sensação de estar na toca. O cheiro de casa, de café sendo passado, os cachorros. Que delícia. Encontrei a Fê por alguns minutos, nessa chegada. Pena, não pude falar muito com ela durante minha estadia no país. Amigos, cervejas, risadas, uns soluços aqui e ali. Mas no dia seguinte, viagem a Curitiba.

A cidade está igual. Ainda bem, não? E foi tão bom encontrar a família, um de cada vez, oi, oi, oi. Mas foi bem rápido, uma noite e na manhã seguinte, antes das 7:00 o Guito já estava lá embaixo tocando o interfone – eu, ele e o Pedro seríamos os primeiros a chegar na praia. Primeiros depois do Feco, que não vale por que já mora lá.

Quatro Ilhas. Preciso dizer muito, ou a foto fala por si? Coloco de propósito as duas fotos juntas, a que eu tirei no aeroporto de Dusseldorf e a outra na praia. Alguma diferença?


Do dia 5 ao 15, praia. Boa companhia, pouca chuva, muito sol, muitos argentinos e argentinas, muita comida. Surfe, no fim, só um dia, de teimosia, nós quatro resolvemos cair num mar mexido. De resto, as maravilhas da praia, suas tardes coloridas, os corpos bronzeados, o cheiro de mar, os pratos do litoral. Leituras no sofá nas horas de muito sol. Aliás, o que é água-furtada? Posso procurar na WEB, e vou, mas pergunto mesmo assim. E inventei a Dodecacofonia. Que é uma escala de 12 graduações de sons horríveis (e cafonas).
Não há muito o que dizer sobre dias na praia, mas esse não muito é muito grande. O grande recarregador da pilha humana. Pra mim, pelo menos.

Depois, uns dias em Curitiba, pra dar uma pausa, e de volta à praia, mas dessa vez com a Joanna e os filhotes em Ilhabela. Praia, praia, etc, etc. Maravilha.

E SP. O melhor daí foi a festa da Anita Cortizas, que me pegou de surpresa – não esperava nada de festa em tao pouco tempo (tinha só 3 dias, precisava voltar pra continuar minha tatuagem em Curitiba). Pude encontrar uma boa leva de amigos e amigas nessa festa. Paulista sabe dar festa. Brasileiro sabe dar festa, em geral. Uma festa sem pretensões, mas muito bem feita, com boa música pra dançar, espaço pra conversar, comer, beber, uma delícia. Amigos de todas as épocas, misturados, muito colorido. Num desses dias me apareceu esse bicho na janela, enquanto eu checava meus emails. Um passarinho verde e barulhento, escandaloso. Altamente outsider, essa coisa assim tão ecológica a três quadra da Marginal.




E Curitiba. Tatuagem, que não deveria doer muito e doeu pacas. Não deu pra ir muito longe, ainda falta bastante coisa pra terminar. Não é uma tatuagemZINHA. Não mostro agora numa foto, além das que já mostrei, agora só quando estiver pronta.


Em Curitiba revi a Teoria da Pizza Eterna, junto com Feco e Guito numa noite de fome. É a minha solução para a fome no mundo. Uma pizza inteira. Divida-a pela metade e sirva uma parte. A parte que sobrou, corte novamente pela metade e sirva um pedaço. O pedaço restante, divida mais uma vez. E assim sucessivamente, vá cortando pela metade e servindo. Sempre haverá metade para servir. Assim está resolvido o problema da fome. Obrigado, obrigado, eu não quero nada em troca, só reconhecimento. É um paradoxo, na verdade, conhecido como Paradoxo da Flecha, do filósofo grego Zenon. Uma flecha, que se desloca em direção a um alvo fixo. Cumpre metade da distância, mas há ainda metade da distância para cumprir. Então, cumpre mais metade dessa distância restante, mas ainda há metade para cumprir. E assim para sempre, com uma metade por cumprir, a flecha nunca atinge o alvo (Mas ela atinge, viu. Pode dormir).


Beijos em todos os irmãos, no pai e na Célia, um pouco de coração apertado na hora de pegar o elevador e São Paulo mais um dia, antes de voar.


O vôo da British saiu no fim da tarde.


Eu não pude dormir nesse vôo. Talvez estivesse muito ansioso, ou excitado pela nova mudança de ares, não sei. Fiquei assistindo aos filmes, lendo, dava umas pescadas de vez enquando. No meio da madrugada, acordei de um desses breves cochilos. O avião estava escuro e o motor parecia mais ensurdecedor. Ao meu lado, o casal que viajava pra Macau dormia. Abri a janelinha. No céu, as estrelas salpicavam o escuro com pontinhos. No horizonte, mais ou menos à mesma altura em que voávamos, uma densa névoa branca se estendia como uma via-láctea de vapor esbranquiçado, dividindo o campo visual em duas grandes abóbodas. Quando olhei para baixo, no meio do breu azulado, me surpreendi com ver estrelas. Estou sonhando ainda? O mar está refletindo as estrelas? Não é possível, mas o que eu via era absurdo e me dava a impressão mais insólita, de estar num avião cortando o espaço sideral, pois para onde eu olhasse só via céu escuro e estrelas, embaixo e em cima. Fiquei alguns minutos me nutrindo daquela visão, contendo a minha ânsia de respostas. Quando alguém acendeu uma luz na cabine, alguma aeromoça, saí sem querer desse pequeno transe. Eram navios na costa de portugal. No escuro e tão longe estavam, que suas luzes brilhavam como estrelas. Eram inúmeros, um belo mar de estrelas.


Antes, durante a noite, já havia aberto a janela ao acaso uma ou duas vezes. Numa delas, me deparei com a luz noturna de uma ilha. Ora, era uma ilha de porte razoável, e no Atlântico não é assim, que vamos vendo ilhas a torto e a direito. Consultei o mapa na tela à minha frente. Estávamos sobrevoando Cabo Verde.


Manhã fria em Londres – nada muito pior do que eu deixei no amalucado verão do sudeste brasileiro (em SP fazia 15 graus quando saí), um atípico clima invernal – mas dentro do caríssimo aeroporto de Heathrow a temperatura era amena. Até quente, para o casaco de couro e pelo de carneiro que eu usava.


Foi no portão 17 do Terminal 4 que eu comecei subitamente a me sentir de novo na Europa. Sentado numa poltrona de couro vermelho, aguçei os ouvidos. Nada de minha língua. A maioria falava alemão, um e outro inglês. Foi ali que de novo a solidão foi tomando seu assento, me fazendo de novo estrangeiro.


Em que momento exato a gente passa sobre a linha que separa a terra da água? É tão breve e inexistente quanto o átimo em que um dedo toca o outro? Quanto tempo leva esse primeiro instante? E o instante em que um dedo se desliga de outro, quanto tempo leva? Em que instante mergulhamos nosso corpo num lago, exatamente em que instante esse lago nos recebe?


E um frio desgraçado, carnaval na alemanha, vampiros, piratas, monges, espermatozóides, caixas de remédio, bruxas, todas as fantasias bem feitinhas, todos em grupos, bem bêbados e risonhos, naquele dia gelado, na estação de trem de Dusseldorf. Umas paradas depois, Tiergartenstr.232, muito sono e aqui estamos.