Ele punha as mãos na cintura, empertigado e tranquilo, dava um trago no cigarro e soltava a fumaça num suspiro satisfeito. Olhava a luz do sol batendo na água da represa e dava um sorriso. Ou então, muito sossegadamente sentava na grama após o churrasco e ficávamos todos, pais, mães e filhos, batendo um papo preguiçoso no fim de tarde. Era assim Percival Brosig.
Eu devia ter uns treze ou catorze anos. Estávamos passando o carnaval na praia, me divertia maltratando um atabaque enquanto a casa toda batucava e cantava Jorge Ben, Fio Maravilha, Charles Anjo 45 e um desfile de outros malandros. E ele dizia, como um bordão do feriado: o que eu não quero é tra-ba-lhar! Numa das noites, eu dormi na rede, na varanda (era o único adolescente da casa, estava livre pra novidades). Achei que ia ser fácil, afinal tanta gente consegue... que nada. Mosquitos, muito frio de madrugada, foliões bêbados cantavam a altos brados. O sol nasceu e Perci surgiu logo depois, vinha manso pela rua, pisando macio, os cabelos em revolução. Tinha passado a noite na farra, como um bom brasileiro, e ia pro seu justo descanso.
São muitas lembranças coloridas e fortes desse cara. Eu olhava pra ele e via um amigo, um tio, um tutor - e aprendi com ele sobre jeitos especiais de se ver as coisas que outras pessoas não tem. Sobre batalhar e não deixar o astral cair mesmo quando a vaca já atolou. Aliás, Perci foi meu mestre de desatolamentos - junto com meu pai, tiramos inúmeras vezes as nossas brasilias e variants da lama, durante toda a década de 80. Hoje a gente raramente atola, mas quando o barro da estrada fica mais grosso e o carro desliza, impossível não sentir uma sensação familiar de prazer e desespero.
Por que o Perci tinha os braços fortes e uma ossatura de guerreiro teutônico - eu era menino e ficava admirado. Ele não tinha rodeios nem frescuras - tacava a mão na bicheira do cachorro e limpava a ferida sem nem piscar, a camisa toda salpicada de sangue. Reclamava só do absurdo que era deixar o bicho chegar naquela situação, que aquele povo era muito ignorante. Apertava porcas, parafusos e dobrava arames pra qualquer gambiarra com a mesma destreza que sentava na prancheta e desenhava delicadezas. Era o modelo, ao lado de meu pai e raros outros homens, daquilo que eu queria ser e ter, além de barba e voz grossa.
Quando fiquei sabendo que ele não estava bem, me deu um aperto. Mandei um email pra ele, dizendo essas coisas, de minha admiração por ele. Eu estava na Alemanha e não podíamos nos ver. Eventualmente nos falávamos por Skype, e eu acompanhei os acontecimentos através do meu pai.
Foi ele quem me ligou ontem pra dizer, entre soluços, que Perci tinha nos deixado enfim. Foi um telefonema de poucos segundos, por que nenhum de nós conseguiu mais falar. Eu tive o peito de repente cheio até a boca duma onda de saudade e carinho tão grande que cheguei a sentir calor. E duas ou três lágrimas contidas e discretas, mas insistentes, me tiraram da sala de reunião - a vida prosaica do cotidiano sendo atravessada pelas hordas bárbaras do imprevisto lancinante.
E agora eu só posso saber disso, dessa saudade e desse carinho que ficam e vão ficar, do amor pelo que eu vivi e aprendi, pelas pessoas que ganhei com ele - Vivi, Emília, Tutu, Tuca e todas as crianças que eu ainda não conheço. Amor pelos caminhos cruzados, pelas noites brincando com a turma na Rua Bocâina, as viagens e o cheiro de terra e borracha e chuva e motor molhado, churrasco e água de rio, lapiseiras, réguas T e cimento, cigarro e festa.
Lá se foi o irmão de todos nós.