domingo, 20 de setembro de 2009

O Bote

Meu deus, ele disse.

Seu corpo está tremendo. O rosto cheio de bolhas de sol, se curva pra molhar o pescoço. Patético. O marinheiro morto vai boiando no verde escuro. Meus braços estão tremendo também, esforço demais. O bote é pequeno e raso, mas estamos muito fracos, o cara era pesado. Muita fome. Ele não tira o olho, finge que está dormindo, mas não tira o olho. As costas na tábua, uns trapos pra proteger do sol. Não gosto desse cara. De papo mole com a Roberta o feriado todo. Antes da porra da lancha pegar fogo e afundar. Não sei cadê a Roberta. Queria comer minha mulher, né safado? Vai morrer de fome igual eu, igual o coitado do marinheiro. Babaca escroto. Estou tonto, sinto o pescoço latejar apoiado na madeira. Os lábios queimam, minha pele escamando feito estuque. Cheiro de sal. Pelo menos ainda temos água. Pra uns dias. Penso um tortelini. E apago.

Acordo, puta frio, madrugada. Um monte de estrelas, lua baixa. Consigo erguer a cabeça. Ele está ali, branco. Dormindo? Ou morreu. Vai ser foda se ele morrer. Não estou a fim de ficar sozinho nesse vazio. O frio me dá um pouco de força, tento sentar. Não dá. Escorrego as costas na bóia, feito uma foca. Tomo uma tampinha de água. Algumas tampinhas por dia. Faz o que? Dez ou doze dias. Uns quatro ou cinco sem comer. Me lembro da Roberta. Os pelinhos arrepiando na maresia. Roberta, a perfeita. Puta fome. Procuro qualquer coisa na linha do mar, tudo embaçado. Tento levantar, espremo os olhos. Nada. Deito de novo, exaurido.

Quantos dias já? Quinze? Vinte? Tudo misturou. Ouvi um avião passar, hoje. Acho. Ou ontem. E a voz da Roberta, gritando. Meus pés estão dormentes, molhados. Acho que ele quer me matar. O puto. Perdemos a faca faz tempo. Então ele vai me sufocar. Tem fome, dor, geme muito. Ele escondeu a faca, tenho certeza. Pra me matar. Tenho que achar. Me viro pro lado. Sonho.

É fim de tarde, tudo amarelo demais. O mar calmo, dá pra ouvir as marolas roçando a bóia. Estou encostado, de frente pra ele. Dez dias sem comer, dois dias sem água. A faca brilha na mão dele. Por que não me matou quando eu dormi? Vem, puto. Vem buscar.

Ele não se mexe. Há horas. Toco seu pé com o meu. Nada. Me arrasto, chego mais perto. Está morto. A fome.

Pego a faca.






(Exercício da oficina com Marcelino Freire na Casa das Rosas - conto de até 25 linhas com tema secreto, presente no subtexto - "canibal")