domingo, 29 de junho de 2008

O que vamos colher no Jardim Bizarro?


(Dexter's Red Fountain, Paris)

Eu não consigo resistir.

O nome do lugar é Jardim Bizarro, é isso? Foi o que eu li outro dia. E como diz Homer Simpson, “se a TV está dizendo então é por que tem que ser verdade”. Não foi na TV, por que aqui a TV não funciona, não sei se já comentei. Foi no jornal mesmo, na Folha. No UOL, mais especificamente. Nesse link: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/06/19/ult5772u141.jhtm.

Bom, imagina a cena: o casal de aposentados, ele de cueca samba-canção listrada e regata branca sentado no sofá vendo o João Kléber. Ela acabou de tirar o robe bordô e está puxando a cortininha do box pra entrar no banho. Um barulhinho, PLOP. Ela não dá atenção. Entra, liga a lorenzetti e pensa numa receita de bolo que veio no verso da caixa de aveia. De repente, pelo espelho do armarinho, ela vê uma mancha escura surgir no chão. Abre a cortininha pra ver melhor. A mancha vermelha cresce e se espalha rapidamente pelo chão. Sangue! Ela pôe a mão na frente da boca, num cruz-credo inaudível. Subitamente, o líquido começa a borbulhar e em instantes jorra como um hidrante atropelado dentro do banheiro, sobre os azulejos e sobre o tapete de peixinhos, salpicando as toalhas e as roupas sujas na cesta (Déjà vu: o elevador se abrindo em The Shining). Gritos, ela corre, escorrega e cai na sopa pegajosa (déjà vu: Nick Nolte patinando no sangue - em Cape Fear? não lembro bem). No chão, chorando apavorada, ela chama o marido, que já está forçando a fechadura. Do outro lado, ele vê o rio vermelho sair para o corredor pela fresta da porta. Ela consegue sair do banheiro, os dois correm para a porta da rua. Antes de sair, ele olha pra trás. Na cozinha, a pia transborda, o ralo se levanta em golfadas rubras. Ao fundo, João Kléber espicaça a audiência: “espera só pra ver o que vai acontecer agora! Espera só pra ver o que vai acontecer!”

Bom. Me diz onde é que essas coisas podem acontecer? Que tipo de palhaçada é essa? Como assim?

Segundo a notícia, a polícia confirmou que era sangue humano. Me explica. O tiozinho falou que o sangue jorrava a 15 centimetros do chão, pelos rejuntes. Tá, exagerou. Mas as senhoras católicas que foram rezar e ajudar a limpar a gosma que ficou espalhada na casa confirmaram o resultado do amalucado evento – o cenário deve ter sido algo como Poltergeist. Me diz, que tipo de cogumelo serviram na quermesse? Até o delegado comeu. Ou colocaram ácido na canjiquinha?

Faz a conta: quantos litros de sangue seriam necessários para fazer pressão suficiente para “jorrar” entre os azulejos e tantos ralos e pias de uma casa? Uma pessoa adulta tem em média 4 litros de sangue circulando no corpo. Chutando alto, 3 garrafas de Minalba. Ou 7 de Brahma, conforme a preferência do vivente. Suficiente pra molhar bem um tapete, escorrer alguns instantes pela escada. Mas pra jorrar, seria necessário secar um punhado de caboclos bem nutridos, construir uma estrutura hidráulica que armazenasse e proporcionasse a pressão necessária, com tubos e bombas. Tudo sem ninguém perceber. Nem que não seja sangue, que seja katchup, pomarola ou suvinil. Ia dar um trabalho cabeludissímo.

Então vamos pensar uma resposta plausível. Os canos do sistema hidráulico da casa enferrujaram e entupiram. A ferrugem tingiu a água com algum vermelho. O vizinho da direita estava matando bois no tanque da lavanderia, e o da direita estava tingindo lençois de vermelho na piscina, e por uma conjunção incomum astronômica, a posição da Lua em relação aos planetas e a Terra, uma maré vermelha raríssima invadiu as estações de tratamento de esgoto da cidade e subiu pelos canos do Jardim Bizzaro. Pronto, eis a equação simples que explica com lógica e naturalidade o ocorrido.

Acho que fazia tempo que não aparecia uma dessas, não? Chupa-Cabras e ET de Varginha (onde foram parar esses ícones da cultura popular?). Agora isso. Que nome daremos? Não consigo pensar em nada original. Caldas Rubras? Pousada do Rio Quente? Fontes de Lestat? Termas da Morte? Sei lá, qualquer um me parece de mal gosto.

Às vezes, quando estou muito cansado ou estressado, em dias de ansiedade e angústia, é mais difícil conseguir dormir. Ainda que meu corpo esteja exaurido, minha mente parece um disco rígido com defeito, como CD riscado. Nessas noites, sem perceber, acabo entrando num ambiente mental muito peculiar. Quando isso acontece, digo adeus ao descanso. Por que sou assaltado por uma série de imagens cinematográficas (da melhor produtora do mundo – The Tormented Soul, talvez um tipo de Alter Ego a la Vincent Price) de todos os tipos de terrores. A lista é extensa, e inclui torturas, mutilações, câmaras da morte, processos inquisitoriais, personalidades monstruosas e monstros per se e muito sangue. Nem parece vir desse bom moço que eu sou. Com sorte, durante esse processo perturbador, eu participo apenas como observador (como se fosse um Alex DeLarge preso a uma cadeira de cinema e obrigado a assistir cenas de violência em Laranja Mecânica).

Meu controle sobre esses pesadelos no pré-sono é bastante relativo. No entanto, descobri que posso ao menos direcionar essa violência para personagens determinados, e assim compensar a possível culpa interna. Ou seja, em noites de angústia, escalpelo Hitler, Stálin, Paulo Maluf, Josef Fritzl, Josef Menguele, faço tirinhas de Trujillo, Mobutu, Franco, Salazar, Pinochet, mergulho a junta militar e os presidentes subsequentes em óleo fervendo, deixo Collor, Sarney, Champinha e Conde D'Eu secarem no sal cortados até o toco, e toco fogo numa multidão de déspotas, assassinos, fascínoras e outros desafetos. Enfim, a fila é grande na escada que desce ao porão. São minhas vinganças pessoais generalizantes atemporais. Algum trauma de infância? Ou simples sadismo bem distribuido? Não penso muito a respeito. Mas para alguns desses persongens reservo destinos terríveis.


(obra do artista Boaz Arad exposta no Centro de Arte Contemporânea de Tel Aviv)


Um deles é imaginar a possibilidade de entrar nos sonhos de cada ditador e descobrir no fundo da sua humanidade esquecida onde está o seu ponto fraco, qual é o seu maior medo, seu inferno. E a partir disso, criar o cenário terrível que ele vai viver para sempre, cada noite da sua vida. Até que ele não tenha mais coragem nem de deitar. Acho que em A Cela existia um sistema desses, de entrar nos sonhos de psicopatas. Será que sou eu o psicopata? Bom, quem dirige essas cenas na ilha de edição da minha mente atordoada com certeza não é nenhuma Pollyana.

Imaginei essa cena do Jardim Bizzarro assim, como um sonho terrível de vingança. Em Poltergeist ("they are here...") é isso que acontece, não? Os fantasmas do antigo cemitério sobre o qual a casa foi construida voltam pra se vingar da invasão. Mas o que será que os aposentados fizeram de errado? Não pagaram o Carnê do Baú? Faltaram no sermão do domingo? Comeram carne na semana santa?

O que me espanta de fato não é o caso dessa notícia aparecer na mídia – quem nunca ouviu falar de Bebê Marciano, cobra de três cabeças, a loura fantasma no banheiro e outras divertidas, (umas nem tanto) lendas urbanas? A internet pulula com o Freakshow do cotidiano. Mas, sair na Folha? E na Band? Ok, não que eu seja crédulo com o jornal só pelo fato de ser jornal (minha mãe era jornalista e eu convivi e convivo com esse meio cavernoso). Mas é o tipo de notícia pra imprensa marrom, não? Coisa pro escalafobético Notícias Populares, também já falecido.

O mundo está virado. Vai ver que é isso. O mundo está virado, e o sangue não está jorrando – está caindo pra cima.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Howling at the Moon




Gordon Bennett
Altered body print (Shadow figure howling at the moon) 1994

domingo, 15 de junho de 2008

Words, words, words. Hamlet, ato 2, cena 2.





Poucas coisas podem ser mais traiçoeiras que um mal-entendido.

Num mundo onde a linguagem é o que nos difere dos animais (em grego, zoon phonanta, um animal que fala), a comunicação entre pessoas é um universo complexo e interessante. A mim sempre me interessa descobrir origens e significados das palavras, relações entre termos em diferentes idiomas e, quando não me dou por satisfeito ou não encontro resposta, criar eu mesmo esses significados e relações. Como diz Saramago, "com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas."

Imagine, por exemplo, Deus. Assim, simplesmente.
Lá, antes do universo existir, no escuro Ele inventa a frase que vai trazer para a existência o Cosmos e a Si mesmo (o tal do Verbo que no princípio, fez-se). Essa frase é a Suprema Chave, a ignição do Big Bang. E Deus, sem muita criatividade pra frases (vai usar toda nos próximos sete dias, não quer desperdiçar), define que Tudo (Tudo, Tudo mesmo) será criado a partir da sentença "E Então Nasceu o Elefante" - não havia ali ninguém pra argumentar que a frase não fazia sentido ou era ridícula, portanto dava na mesma - ela seria o código para o nascimento do Mundo e pronto. Definida a frase, Ele a anota para ser pronunciada no momento propício. No entanto, no escuro e ainda sem grande pratica em escritas (isso ele ia ter que praticar mais tarde antes de entregar o livro a Moisés), escreve a frase num papirinho (fica mais bíblico que papel), só que troca a posição do "e" e do "a" e o "f" escrito numa caligrafia incipiente fica mais parecido com um "g" e no script da Vida sem querer a frase vira "E Então Nescau Elegante". Percebe o que poderia ter acontecido? Imagina só o que poderia ter sido criado com esse divinamente prosaico mal-entendido. (Vai ver que aconteceu assim e a gente nem tá sabendo... ou está?).

Ou seja, palavras. O negócio é ficar amigo delas. Eu tento.

Por exemplo. Tirem as crianças da sala, vou falar não um mas vários palavrões, em mais de uma língua. A palavra que mais me apraz entre as de baixo calão para me referir ao magnífico aparato sexual feminino é, perdoem-me, buceta. Impossível proferir essa palavra sem encher a boca, como se cheia do sublime artigo ela de fato estivesse – um cunilíngue oferecido de maneira abandonada e entregue decerto é no mundo táctil das interrelações humanas o mesmo que, para uma boca solitária, encher-se de ar e dizer numa bolha de prazer voluptuoso: buceta. Atentem, por favor, não estou necessariamente querendo impor quaisquer conotações sexuais ao ato de dizer, além das que já aí estão. Por que nem só de prazer vive na boca das pessoas a palavra buceta. Afinal, quanta gente não usa o termo quando se indigna com alguma coisa, ou para expressar sua frustração com algo que não deu certo? (embora eu pessoalmente não entenda exatamente a relação entre a periquita e uma martelada no dedo – mas cada um com seus problemas). Gostaria apenas de observar especificamente a mecânica prazeirosa e suavemente explosiva da palavra. Observado? Passemos adiante.

Pois bem, aqui na Alemanha, a palavra equivalente para buceta é Muschi (assim com maiúscula pra respeitar a gramatica teutônica, em que substantivos levam capital letters no início).


Ora, uma meia sinapse de ostra letrada nos faz formular a seguinte equação para explicar a origem dos termos: caixa, bolsa, recipiente (em português) tem o equivalente latino boceta, [vide Boceta de Pandora (mas aí é outro mal-entendido bem mais radical)]. A boceta (que obviamente derivou em português para buceta, não precisa nem dizer) por sua vez com o passar dos séculos foi ganhando novas e mais práticas formas, entre as quais a popular mochila. Ora, não me parece absurdo pensar que a expressão Muschi seja dessa maneira aparentada diretamente com a nossa (?) popular buceta. No mínimo uma prima de segundo grau, eu ousaria afirmar. Ora, num país em que as pappas incas, chamadas pelos italianos de tartufoli, foram transformadas em Kartoffeln, que mal haveria em fazer do Rucksac latino mochila uma Muschi acolhedora e cheia de segredos?


Tragam as crianças de volta, acabou a baixaria intelectualizada (seria apenas um pretexto pra cair de boca na botija?). Mas continuamos no assunto. Com mais sutileza, maestro, por favor.

Em alemão não existe, como em português, uma palavra específica pra designar namorada (o). Aqui, namorada é Freundin, namorado é Freund (leia-se aqui fróind, ali fróindín), que é a mesma palavra para amigo(a). Se você quiser que a pessoa entenda, trate de ser claro, na entonação, no olhar, no gestual, como preferir. Mas se disser simplesmente “Da ist meine Freundin”, é bem possível que o interlocutor pense que você namora a fulana que você apontou – eu já me enrolei algumas vezes comentando sobre alguma amiga, que na cabeça da pessoa com quem eu estava conversando ficou muito tempo sendo minha namorada. Ainda que a outra versão também não seja rara - falar de uma namorada, e ela ser considerada só amiga.
Agora, vem a pergunta. Por quê?

Se formos pensar a respeito, há duas possibilidades mais óbvias – embora nenhuma das duas tenha muita lógica: primeira – durante séculos, a relação entre meninos e meninas foi restrita a situações de absoluto controle parental, com proibições de todos os tipos. Nesse caso, é claro que, se num determinado momento mágico de sua vida, ao menino era dada a possibilidade de ter uma “amiga” ou a garota um “amigo” – o que era mais acintoso ainda (por que ele talvez pudesse fazer “amigas” entre as raparigas de vida fácil e trata fina), era óbvio, por convenção, que a nova parceira, além de namorada, viria a ser noiva e esposa do dito cujo – e mais ainda um insofismável marido, no caso da garota. Não havia a possibilidade de um garoto ter uma amiga, ou vice-versa, como hoje há, até demais, diga-se de passagem.

Segunda hipótese: sempre que um garoto (ou uma garota, claro) tem uma amiga, significa que os dois podem agir como namorados, ou seja, toda amiga é uma namorada, amante, cacho ou affair oficial e o cara pode sair beijando e apalpando quem ele quiser por que tá tudo liberado. E vão-se rios de dinheiro com flores e bom-bons no Valentine’s Day. Tenho a impressão que não é por aí. Se tiver que apostar em uma, aposto na primeira. Mas como não tenho que apostar em nenhuma, dane-se. Vai ver que simplesmente o alemão não está nem aí pra isso, sei lá.

Quantos mal-entendidos podem ocorrer vindo daí? Vários. Especialmente se você não domina o idioma – e esse exemplo é apenas um entre centenas de possibilidades de gafes e erros dramáticos.

Por isso eu gosto sempre de encontrar a palavra mais adequada, aquela que dá menor margem para interpretações independentes. Obnubilado, por exemplo. Está claro: prefixo “ob”= interrompido, como em obstáculo + nubilado, de nuvem. Um sujeito obnubilado está preso nas nuvens. Em geral as palavras mais antigas são mais assertivas. As piores são as gírias. Essas sempre tem que ser explicadas. E sempre desaparecem pra dar lugar a novas, que trazem invariavelmente suas estapafúrdias explicações (no mais das vezes totalmente justificadas). Que tal "vassourou" (dito "vassorô!")? ou "passei na seda"? Nem tente, não é o que você está pensando que é. Procure na Wikipédia ou pergunte pro seu irmão mais novo.



Mas algumas expressões são adequadas demais. Como o Verbo Divino, servem como chaves para a entrada num novo Universo.



É por isso que eu não entendo quando uma pessoa diz a outra “te amo” se não sente exatamente o que as palavras “te amo” querem dizer, com toda a sua intangível complexidade. Uma coisa clara é dizer, “te amo, meu filho”, ou “te quero como amigo” (ai, coitado), ou “cara, eu adoro esse sujeito!” – mas dizer apenas “te amo” é pra poucos e bons. Por que “te amo” não explica nada, e nem é pra explicar. É algo que não apresenta nenhum caminho e ao mesmo tempo carrega o ouvinte para um maremoto de possíveis sensações (cujos matizes dependem da sua correspondência ao amor do outro, óbvio) e a infinitas hipotéticas reações. Quem diz “te amo” tem que saber muito bem o que diz – mesmo que nunca possa explicar. Não é uma frase banal, não é pra ser usada como “beijo, tchau” e desligar o telefone.

Durante anos eu fui incapaz de dizer às minhas namoradas esse fatídico “te amo”. Por duas razões, acredito. Uma que eu tinha a impressão de que essas duas palavras revelavam um segredo que eu ainda não conhecia: eu tinha impressão de que aquilo que eu sentia ainda não podia ser amor, que amor era algo mais. Em alguns casos estava certo. Então, sentia que se dissesse “te amo” sem absoluta certeza de que o que eu sentia era amor, estaria desperdiçando algo muito precioso e finito, como se ao dizer eu gastasse um pouco daquele amor na entrega. Queria ter provas pessoais de que meu amor não seria diminuído ao colocá-lo em palavras (elas sempre foram capitais pra mim), que fosse o que fosse meu sentimento, ele não se esfiaparia de repente numa frase. Sobretudo não queria dizer isso de maneira banal, como nas novelas da globo, ou como quem pede um cachorro-quente no fim da balada. A segunda razão é que eu tinha uma certa vergonha. Um certo pudor. Isso já merecia uma explicação mais longa, diante da minha analista, acho. Tem a ver com a passagem rápida e forçada da infância para a responsabilidade adulta implícita na convivência com a doença e morte de minha mãe. Minha primeira namorada (e a primeira mulher que eu beijei) surgiu quando eu tinha 17 anos, e não muito depois perdi minha mãe. O que me fez, durante muitos anos, um cara duro e em certa maneira, insensível – dizer “te amo” parecia muito meloso pra mim, naquela época. Algumas moças ficaram bastante desoladas com essa minha falta de consideração, mas fazer o quê, o tempo educa com o tempo. Aprendi , depois. Hoje não hesito em dizer, quando percebo que amo – acho bonito e tenho certeza que engrandeço o Cosmos assim. E da vida nada se leva, convém lembrar.

É por isso então, que eu recomendo aqui de baixo: não diga “te amo” se você não ama de fato. Pro seu filho ou sua filha, está claro, não precisa nem pensar, diga sempre. Igual vale pro seu pai, sua mãe ou seus irmãos. Seu cachorro, se quiser, ele não vai entender a palavra, provavelmente, mas vai perceber muito mais do que você pensa. Pra todos esses pode dizer sem medo.

Mas a alguém que te ama, como um homem ama uma mulher ou uma mulher ama um homem ou as possíveis variações, alguém que te ama especialmente, e não é correspondido da mesma forma, não diga nem debaixo de chantagem. Você pode estar jogando a pessoa e a si mesmo (a) num caldeirão cármico imprevisível. Seja claro (a), e aguente as consequências, por que é melhor.

Na mitologia grega, a última coisa que restou na Boceta de Pandora, após a libertação de todos os males, foi ἐλπίς (elpís) – em geral traduzido como esperança. No entanto, essa espera é mais adequadamente traduzida como antecipação, e no mito referia-se provavelmente à antecipação de todos os males (de que os homens foram felizmente poupados).

Ao declarar “te amo” sem de fato amar, você não está soltando o último mal da Caixa de Pandora sobre a pessoa que te ama. Você está prendendo ela dentro da caixa com ele.


quarta-feira, 4 de junho de 2008

Graxa na veia




Hoje fui apresentado formalmente à fragrância GARAGE, da Comme des Garçons - série Synthetic. Sebastian, meu parceiro de trabalho no Studio, não parava de cheirar a manga de sua camisa tailandesa e emitir grunhidos de satisfação a cada cinco minutos. Diante de meu olhar intrigado, me convidou a cheirar seu pulso. Não sou de cheirar pulsos de homens desconhecidos - acho que nem de conhecidos, mas Sebastian estava mesmo intrigante e já é de casa. Mais do que eu, até - está há mais tempo envolvido aqui, embora eu seja mais frequente. Pois cheirei e constatei, é algo inusitado de fato. Começamos a conversar a respeito de perfumes e cheiros estranhos que nos dão ou deram prazer em algum momento da vida. Está provado que o olfato é o sentido mais intimamente ligado à memória, basta sentir um cheiro familiar que nosso pensamento é instantaneamente invadido por situações e sensações vividas no passado [que memória poderiamos ter de sensações vividas no futuro? Segundo George Steiner, em uma das línguas faladas no Peru, há uma que organiza o pensamento de forma que ao se "olhar adiante" vê-se o passado e dá-se as costas para o futuro - afinal, o futuro é insondável e o passado não. Mas deixemos as citações de lado, isso é para intelectuais judeus inteligentes (uma tautologia tripla?), não para um rapaz amuado com samba no pé como eu - atenção para os antepassados rolando nos túmulos, os que não viraram fumaça]. A partir daí, passamos a enumerar odores insólitos mas de alguma maneira agradáveis ou marcantes. A lista é bizarra, e eu convido você, caro leitor (é a primeira vez que eu escrevo isso na vida, vou repetir: caro leitor, caro leitor, desculpe), a elaborar uma lista pessoal nesse sentido. Diversão e prazer garantidos por alguns minutos, que pra isso que a gente vive, também. Segue minha lista pessoal como inspiração (eu disse inspiração?):

1. Gasolina - esse pra mim é o mais bizarro de todos. Mas eu, quando era criança, adorava sentir cheiro de posto. Quando parávamos pra abastecer eu punha o rosto na janela pra sentir aquele cheiro, e podia ficar muito tempo sentindo. Na mesma linha, o cheiro de motor dois tempos, com a sua mistura diferenciada, ainda me faz virar a cabeça (o barulho também é outro). Mas hoje não posso mais com posto de gasolina, não suporto. Diesel eu detesto.

2. Oficina de marcenaria - um clássico. Creio que na realidade esse cheiro faz parte de um cluster olfativo, em que poderíamos agrupar todas as possibilidades que a madeira pode dar - e são infinitas. Por isso, separo as minhas preferidas abaixo:

- fumaça das chaminés nas ruas de Curitiba no inverno

- desenhos feitos com pirógrafo

- lenha recém cortada

- mato molhado

- etc


3. Oficina de metalurgia - esse é outro cluster, talvez mais pessoal que o anterior. Não são todas as crianças que tem a oportunidade de conviver com o universo da solda mig, esmeril, maçaricos, furadeiras múltiplas, guilhotinas e outras máquinas leves e pesadas e todo o panteão químico que o permeia, graxa, óleo, gás, ferrugem, e outras alquimias que eu não saberia nomear.


4. Cadeiras antigas de jardim, de tiras de poliestireno (ou poliéster? não sei bem) - sei apenas que era nessas cadeiras que recostávamos após o almoço de domingo no enorme terraço da casa de meus avós. Uma tatuagem, praticamente. Senti o mesmo cheiro uma vez novamente aos 16 anos perto de uns galões que esperavam o caminhão de lixo (onde vi o nome do plástico), depois nunca mais. Deve ser proibido, hoje em dia.


5. Mimeógrafo - que prazer, era praticamente uma revelação, cada vez que recebíamos as cópias, às vezes ainda quentes, rescendendo a álcool e tipicamente azul-lilás. Fossem provas, exercícios ou simples textos, não importa. Era um prazer matinal.


6. Motor quente com água barrenta - some-se a isso o cheiro da borracha do pneu de um carro atolado, um pouco de terra, mato e chuva, e a cena é completa. Um prazer de certa forma masoquista (especialmente a partir do momento em que eu já tinha idade pra participar do esforço para desatolamento). Mas a imagem do conjunto fazenda-churrasco-aventura sem dúvida me apraz.


7. Querosene - o que o item acima me traz de imagem diurna, querosene me traz de noturna, no mesmo ambiente rural. E velas, por que não havia eletricidade, e era mágico que não houvesse.


8. Spray - minhas desventuras como marginal - nunca vou poder dizer que era grafiteiro. Nas vezes em que me arrisquei em incursões noturnas para esse tipo de contravenção, não tinha mais capacidade do que o bastante para pixações. Com certa poesia, mas sempre apenas pixações. Mas o thrill era embebido em adrenalina, e isso basta.


9. Brinquedos eletro-mecânicos desmontados - o que será que era? a graxa talvez, e a descoberta da possibilidade magnificamente "menino" de poder desconstruir e (talvez) construir de volta. O domínio da matéria.


10. Estábulo - palha seca e bosta de cavalo, basicamente. Não sei bem por quê, mas me lembra comercial de margarina, café-da-manhã, uma mulher bonita usando uma camisa masculina branca. Eu também sei ser brega. (por outro lado, no fim essa imagem toda termina com um terrível assassinato - fruto dos livros policiais, vai ver. O que é o inconsciente?...)


11. Caixa de charutos vazia - de qualquer maneira, eu aprecio charutos. Mas a caixa tem algo em si, sem os charutos. É uma virilidade de presença inquestionável.


12. Fita crepe - ???? de onde saiu isso? Sinceramente, gosto de encostar o nariz na lateral do rolo de fita crepe. Vale o mesmo pra cola branca. Deve fazer mal. (cola de sapateiro sim, mas de longe e rápido, por que dá dor de cabeça e come os neurônios). Piorando a lista - esmalte de unha. Não gosto do efeito neurológico, mas o cheiro me lembra dias na praia e boas comidas. Vai entender.


13. Gás de cozinha - Bizarro. Um tico só, por que mata.


14. Fósforo queimado - hummmmmmm.... mas tem que ser efêmero pra não enjoar.


Há outros, talvez menos marcantes, mas eu não quero prolongar a lista. Não sou um expert em perfumes, apesar de ter um olfato até bastante apurado pra um mortal. Aprecio os bons perfumes, desses a que a gente se entrega com suavidade - café, pão-de-queijo, flores, madeiras, roupa limpa (às vezes roupa usada, depende de quem usou e como), livros novos, chás, bolinhos, comidas, etc, etc. Mas minha atenção se voltou momentaneamente para esses cheiros marginais, da poesia suja do dia-a-dia, que é onde os meninos estão sendo homens e (felizmente) não sabem ainda.