domingo, 29 de junho de 2008

O que vamos colher no Jardim Bizarro?


(Dexter's Red Fountain, Paris)

Eu não consigo resistir.

O nome do lugar é Jardim Bizarro, é isso? Foi o que eu li outro dia. E como diz Homer Simpson, “se a TV está dizendo então é por que tem que ser verdade”. Não foi na TV, por que aqui a TV não funciona, não sei se já comentei. Foi no jornal mesmo, na Folha. No UOL, mais especificamente. Nesse link: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/06/19/ult5772u141.jhtm.

Bom, imagina a cena: o casal de aposentados, ele de cueca samba-canção listrada e regata branca sentado no sofá vendo o João Kléber. Ela acabou de tirar o robe bordô e está puxando a cortininha do box pra entrar no banho. Um barulhinho, PLOP. Ela não dá atenção. Entra, liga a lorenzetti e pensa numa receita de bolo que veio no verso da caixa de aveia. De repente, pelo espelho do armarinho, ela vê uma mancha escura surgir no chão. Abre a cortininha pra ver melhor. A mancha vermelha cresce e se espalha rapidamente pelo chão. Sangue! Ela pôe a mão na frente da boca, num cruz-credo inaudível. Subitamente, o líquido começa a borbulhar e em instantes jorra como um hidrante atropelado dentro do banheiro, sobre os azulejos e sobre o tapete de peixinhos, salpicando as toalhas e as roupas sujas na cesta (Déjà vu: o elevador se abrindo em The Shining). Gritos, ela corre, escorrega e cai na sopa pegajosa (déjà vu: Nick Nolte patinando no sangue - em Cape Fear? não lembro bem). No chão, chorando apavorada, ela chama o marido, que já está forçando a fechadura. Do outro lado, ele vê o rio vermelho sair para o corredor pela fresta da porta. Ela consegue sair do banheiro, os dois correm para a porta da rua. Antes de sair, ele olha pra trás. Na cozinha, a pia transborda, o ralo se levanta em golfadas rubras. Ao fundo, João Kléber espicaça a audiência: “espera só pra ver o que vai acontecer agora! Espera só pra ver o que vai acontecer!”

Bom. Me diz onde é que essas coisas podem acontecer? Que tipo de palhaçada é essa? Como assim?

Segundo a notícia, a polícia confirmou que era sangue humano. Me explica. O tiozinho falou que o sangue jorrava a 15 centimetros do chão, pelos rejuntes. Tá, exagerou. Mas as senhoras católicas que foram rezar e ajudar a limpar a gosma que ficou espalhada na casa confirmaram o resultado do amalucado evento – o cenário deve ter sido algo como Poltergeist. Me diz, que tipo de cogumelo serviram na quermesse? Até o delegado comeu. Ou colocaram ácido na canjiquinha?

Faz a conta: quantos litros de sangue seriam necessários para fazer pressão suficiente para “jorrar” entre os azulejos e tantos ralos e pias de uma casa? Uma pessoa adulta tem em média 4 litros de sangue circulando no corpo. Chutando alto, 3 garrafas de Minalba. Ou 7 de Brahma, conforme a preferência do vivente. Suficiente pra molhar bem um tapete, escorrer alguns instantes pela escada. Mas pra jorrar, seria necessário secar um punhado de caboclos bem nutridos, construir uma estrutura hidráulica que armazenasse e proporcionasse a pressão necessária, com tubos e bombas. Tudo sem ninguém perceber. Nem que não seja sangue, que seja katchup, pomarola ou suvinil. Ia dar um trabalho cabeludissímo.

Então vamos pensar uma resposta plausível. Os canos do sistema hidráulico da casa enferrujaram e entupiram. A ferrugem tingiu a água com algum vermelho. O vizinho da direita estava matando bois no tanque da lavanderia, e o da direita estava tingindo lençois de vermelho na piscina, e por uma conjunção incomum astronômica, a posição da Lua em relação aos planetas e a Terra, uma maré vermelha raríssima invadiu as estações de tratamento de esgoto da cidade e subiu pelos canos do Jardim Bizzaro. Pronto, eis a equação simples que explica com lógica e naturalidade o ocorrido.

Acho que fazia tempo que não aparecia uma dessas, não? Chupa-Cabras e ET de Varginha (onde foram parar esses ícones da cultura popular?). Agora isso. Que nome daremos? Não consigo pensar em nada original. Caldas Rubras? Pousada do Rio Quente? Fontes de Lestat? Termas da Morte? Sei lá, qualquer um me parece de mal gosto.

Às vezes, quando estou muito cansado ou estressado, em dias de ansiedade e angústia, é mais difícil conseguir dormir. Ainda que meu corpo esteja exaurido, minha mente parece um disco rígido com defeito, como CD riscado. Nessas noites, sem perceber, acabo entrando num ambiente mental muito peculiar. Quando isso acontece, digo adeus ao descanso. Por que sou assaltado por uma série de imagens cinematográficas (da melhor produtora do mundo – The Tormented Soul, talvez um tipo de Alter Ego a la Vincent Price) de todos os tipos de terrores. A lista é extensa, e inclui torturas, mutilações, câmaras da morte, processos inquisitoriais, personalidades monstruosas e monstros per se e muito sangue. Nem parece vir desse bom moço que eu sou. Com sorte, durante esse processo perturbador, eu participo apenas como observador (como se fosse um Alex DeLarge preso a uma cadeira de cinema e obrigado a assistir cenas de violência em Laranja Mecânica).

Meu controle sobre esses pesadelos no pré-sono é bastante relativo. No entanto, descobri que posso ao menos direcionar essa violência para personagens determinados, e assim compensar a possível culpa interna. Ou seja, em noites de angústia, escalpelo Hitler, Stálin, Paulo Maluf, Josef Fritzl, Josef Menguele, faço tirinhas de Trujillo, Mobutu, Franco, Salazar, Pinochet, mergulho a junta militar e os presidentes subsequentes em óleo fervendo, deixo Collor, Sarney, Champinha e Conde D'Eu secarem no sal cortados até o toco, e toco fogo numa multidão de déspotas, assassinos, fascínoras e outros desafetos. Enfim, a fila é grande na escada que desce ao porão. São minhas vinganças pessoais generalizantes atemporais. Algum trauma de infância? Ou simples sadismo bem distribuido? Não penso muito a respeito. Mas para alguns desses persongens reservo destinos terríveis.


(obra do artista Boaz Arad exposta no Centro de Arte Contemporânea de Tel Aviv)


Um deles é imaginar a possibilidade de entrar nos sonhos de cada ditador e descobrir no fundo da sua humanidade esquecida onde está o seu ponto fraco, qual é o seu maior medo, seu inferno. E a partir disso, criar o cenário terrível que ele vai viver para sempre, cada noite da sua vida. Até que ele não tenha mais coragem nem de deitar. Acho que em A Cela existia um sistema desses, de entrar nos sonhos de psicopatas. Será que sou eu o psicopata? Bom, quem dirige essas cenas na ilha de edição da minha mente atordoada com certeza não é nenhuma Pollyana.

Imaginei essa cena do Jardim Bizzarro assim, como um sonho terrível de vingança. Em Poltergeist ("they are here...") é isso que acontece, não? Os fantasmas do antigo cemitério sobre o qual a casa foi construida voltam pra se vingar da invasão. Mas o que será que os aposentados fizeram de errado? Não pagaram o Carnê do Baú? Faltaram no sermão do domingo? Comeram carne na semana santa?

O que me espanta de fato não é o caso dessa notícia aparecer na mídia – quem nunca ouviu falar de Bebê Marciano, cobra de três cabeças, a loura fantasma no banheiro e outras divertidas, (umas nem tanto) lendas urbanas? A internet pulula com o Freakshow do cotidiano. Mas, sair na Folha? E na Band? Ok, não que eu seja crédulo com o jornal só pelo fato de ser jornal (minha mãe era jornalista e eu convivi e convivo com esse meio cavernoso). Mas é o tipo de notícia pra imprensa marrom, não? Coisa pro escalafobético Notícias Populares, também já falecido.

O mundo está virado. Vai ver que é isso. O mundo está virado, e o sangue não está jorrando – está caindo pra cima.