quarta-feira, 4 de junho de 2008

Graxa na veia




Hoje fui apresentado formalmente à fragrância GARAGE, da Comme des Garçons - série Synthetic. Sebastian, meu parceiro de trabalho no Studio, não parava de cheirar a manga de sua camisa tailandesa e emitir grunhidos de satisfação a cada cinco minutos. Diante de meu olhar intrigado, me convidou a cheirar seu pulso. Não sou de cheirar pulsos de homens desconhecidos - acho que nem de conhecidos, mas Sebastian estava mesmo intrigante e já é de casa. Mais do que eu, até - está há mais tempo envolvido aqui, embora eu seja mais frequente. Pois cheirei e constatei, é algo inusitado de fato. Começamos a conversar a respeito de perfumes e cheiros estranhos que nos dão ou deram prazer em algum momento da vida. Está provado que o olfato é o sentido mais intimamente ligado à memória, basta sentir um cheiro familiar que nosso pensamento é instantaneamente invadido por situações e sensações vividas no passado [que memória poderiamos ter de sensações vividas no futuro? Segundo George Steiner, em uma das línguas faladas no Peru, há uma que organiza o pensamento de forma que ao se "olhar adiante" vê-se o passado e dá-se as costas para o futuro - afinal, o futuro é insondável e o passado não. Mas deixemos as citações de lado, isso é para intelectuais judeus inteligentes (uma tautologia tripla?), não para um rapaz amuado com samba no pé como eu - atenção para os antepassados rolando nos túmulos, os que não viraram fumaça]. A partir daí, passamos a enumerar odores insólitos mas de alguma maneira agradáveis ou marcantes. A lista é bizarra, e eu convido você, caro leitor (é a primeira vez que eu escrevo isso na vida, vou repetir: caro leitor, caro leitor, desculpe), a elaborar uma lista pessoal nesse sentido. Diversão e prazer garantidos por alguns minutos, que pra isso que a gente vive, também. Segue minha lista pessoal como inspiração (eu disse inspiração?):

1. Gasolina - esse pra mim é o mais bizarro de todos. Mas eu, quando era criança, adorava sentir cheiro de posto. Quando parávamos pra abastecer eu punha o rosto na janela pra sentir aquele cheiro, e podia ficar muito tempo sentindo. Na mesma linha, o cheiro de motor dois tempos, com a sua mistura diferenciada, ainda me faz virar a cabeça (o barulho também é outro). Mas hoje não posso mais com posto de gasolina, não suporto. Diesel eu detesto.

2. Oficina de marcenaria - um clássico. Creio que na realidade esse cheiro faz parte de um cluster olfativo, em que poderíamos agrupar todas as possibilidades que a madeira pode dar - e são infinitas. Por isso, separo as minhas preferidas abaixo:

- fumaça das chaminés nas ruas de Curitiba no inverno

- desenhos feitos com pirógrafo

- lenha recém cortada

- mato molhado

- etc


3. Oficina de metalurgia - esse é outro cluster, talvez mais pessoal que o anterior. Não são todas as crianças que tem a oportunidade de conviver com o universo da solda mig, esmeril, maçaricos, furadeiras múltiplas, guilhotinas e outras máquinas leves e pesadas e todo o panteão químico que o permeia, graxa, óleo, gás, ferrugem, e outras alquimias que eu não saberia nomear.


4. Cadeiras antigas de jardim, de tiras de poliestireno (ou poliéster? não sei bem) - sei apenas que era nessas cadeiras que recostávamos após o almoço de domingo no enorme terraço da casa de meus avós. Uma tatuagem, praticamente. Senti o mesmo cheiro uma vez novamente aos 16 anos perto de uns galões que esperavam o caminhão de lixo (onde vi o nome do plástico), depois nunca mais. Deve ser proibido, hoje em dia.


5. Mimeógrafo - que prazer, era praticamente uma revelação, cada vez que recebíamos as cópias, às vezes ainda quentes, rescendendo a álcool e tipicamente azul-lilás. Fossem provas, exercícios ou simples textos, não importa. Era um prazer matinal.


6. Motor quente com água barrenta - some-se a isso o cheiro da borracha do pneu de um carro atolado, um pouco de terra, mato e chuva, e a cena é completa. Um prazer de certa forma masoquista (especialmente a partir do momento em que eu já tinha idade pra participar do esforço para desatolamento). Mas a imagem do conjunto fazenda-churrasco-aventura sem dúvida me apraz.


7. Querosene - o que o item acima me traz de imagem diurna, querosene me traz de noturna, no mesmo ambiente rural. E velas, por que não havia eletricidade, e era mágico que não houvesse.


8. Spray - minhas desventuras como marginal - nunca vou poder dizer que era grafiteiro. Nas vezes em que me arrisquei em incursões noturnas para esse tipo de contravenção, não tinha mais capacidade do que o bastante para pixações. Com certa poesia, mas sempre apenas pixações. Mas o thrill era embebido em adrenalina, e isso basta.


9. Brinquedos eletro-mecânicos desmontados - o que será que era? a graxa talvez, e a descoberta da possibilidade magnificamente "menino" de poder desconstruir e (talvez) construir de volta. O domínio da matéria.


10. Estábulo - palha seca e bosta de cavalo, basicamente. Não sei bem por quê, mas me lembra comercial de margarina, café-da-manhã, uma mulher bonita usando uma camisa masculina branca. Eu também sei ser brega. (por outro lado, no fim essa imagem toda termina com um terrível assassinato - fruto dos livros policiais, vai ver. O que é o inconsciente?...)


11. Caixa de charutos vazia - de qualquer maneira, eu aprecio charutos. Mas a caixa tem algo em si, sem os charutos. É uma virilidade de presença inquestionável.


12. Fita crepe - ???? de onde saiu isso? Sinceramente, gosto de encostar o nariz na lateral do rolo de fita crepe. Vale o mesmo pra cola branca. Deve fazer mal. (cola de sapateiro sim, mas de longe e rápido, por que dá dor de cabeça e come os neurônios). Piorando a lista - esmalte de unha. Não gosto do efeito neurológico, mas o cheiro me lembra dias na praia e boas comidas. Vai entender.


13. Gás de cozinha - Bizarro. Um tico só, por que mata.


14. Fósforo queimado - hummmmmmm.... mas tem que ser efêmero pra não enjoar.


Há outros, talvez menos marcantes, mas eu não quero prolongar a lista. Não sou um expert em perfumes, apesar de ter um olfato até bastante apurado pra um mortal. Aprecio os bons perfumes, desses a que a gente se entrega com suavidade - café, pão-de-queijo, flores, madeiras, roupa limpa (às vezes roupa usada, depende de quem usou e como), livros novos, chás, bolinhos, comidas, etc, etc. Mas minha atenção se voltou momentaneamente para esses cheiros marginais, da poesia suja do dia-a-dia, que é onde os meninos estão sendo homens e (felizmente) não sabem ainda.