domingo, 15 de junho de 2008

Words, words, words. Hamlet, ato 2, cena 2.





Poucas coisas podem ser mais traiçoeiras que um mal-entendido.

Num mundo onde a linguagem é o que nos difere dos animais (em grego, zoon phonanta, um animal que fala), a comunicação entre pessoas é um universo complexo e interessante. A mim sempre me interessa descobrir origens e significados das palavras, relações entre termos em diferentes idiomas e, quando não me dou por satisfeito ou não encontro resposta, criar eu mesmo esses significados e relações. Como diz Saramago, "com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas."

Imagine, por exemplo, Deus. Assim, simplesmente.
Lá, antes do universo existir, no escuro Ele inventa a frase que vai trazer para a existência o Cosmos e a Si mesmo (o tal do Verbo que no princípio, fez-se). Essa frase é a Suprema Chave, a ignição do Big Bang. E Deus, sem muita criatividade pra frases (vai usar toda nos próximos sete dias, não quer desperdiçar), define que Tudo (Tudo, Tudo mesmo) será criado a partir da sentença "E Então Nasceu o Elefante" - não havia ali ninguém pra argumentar que a frase não fazia sentido ou era ridícula, portanto dava na mesma - ela seria o código para o nascimento do Mundo e pronto. Definida a frase, Ele a anota para ser pronunciada no momento propício. No entanto, no escuro e ainda sem grande pratica em escritas (isso ele ia ter que praticar mais tarde antes de entregar o livro a Moisés), escreve a frase num papirinho (fica mais bíblico que papel), só que troca a posição do "e" e do "a" e o "f" escrito numa caligrafia incipiente fica mais parecido com um "g" e no script da Vida sem querer a frase vira "E Então Nescau Elegante". Percebe o que poderia ter acontecido? Imagina só o que poderia ter sido criado com esse divinamente prosaico mal-entendido. (Vai ver que aconteceu assim e a gente nem tá sabendo... ou está?).

Ou seja, palavras. O negócio é ficar amigo delas. Eu tento.

Por exemplo. Tirem as crianças da sala, vou falar não um mas vários palavrões, em mais de uma língua. A palavra que mais me apraz entre as de baixo calão para me referir ao magnífico aparato sexual feminino é, perdoem-me, buceta. Impossível proferir essa palavra sem encher a boca, como se cheia do sublime artigo ela de fato estivesse – um cunilíngue oferecido de maneira abandonada e entregue decerto é no mundo táctil das interrelações humanas o mesmo que, para uma boca solitária, encher-se de ar e dizer numa bolha de prazer voluptuoso: buceta. Atentem, por favor, não estou necessariamente querendo impor quaisquer conotações sexuais ao ato de dizer, além das que já aí estão. Por que nem só de prazer vive na boca das pessoas a palavra buceta. Afinal, quanta gente não usa o termo quando se indigna com alguma coisa, ou para expressar sua frustração com algo que não deu certo? (embora eu pessoalmente não entenda exatamente a relação entre a periquita e uma martelada no dedo – mas cada um com seus problemas). Gostaria apenas de observar especificamente a mecânica prazeirosa e suavemente explosiva da palavra. Observado? Passemos adiante.

Pois bem, aqui na Alemanha, a palavra equivalente para buceta é Muschi (assim com maiúscula pra respeitar a gramatica teutônica, em que substantivos levam capital letters no início).


Ora, uma meia sinapse de ostra letrada nos faz formular a seguinte equação para explicar a origem dos termos: caixa, bolsa, recipiente (em português) tem o equivalente latino boceta, [vide Boceta de Pandora (mas aí é outro mal-entendido bem mais radical)]. A boceta (que obviamente derivou em português para buceta, não precisa nem dizer) por sua vez com o passar dos séculos foi ganhando novas e mais práticas formas, entre as quais a popular mochila. Ora, não me parece absurdo pensar que a expressão Muschi seja dessa maneira aparentada diretamente com a nossa (?) popular buceta. No mínimo uma prima de segundo grau, eu ousaria afirmar. Ora, num país em que as pappas incas, chamadas pelos italianos de tartufoli, foram transformadas em Kartoffeln, que mal haveria em fazer do Rucksac latino mochila uma Muschi acolhedora e cheia de segredos?


Tragam as crianças de volta, acabou a baixaria intelectualizada (seria apenas um pretexto pra cair de boca na botija?). Mas continuamos no assunto. Com mais sutileza, maestro, por favor.

Em alemão não existe, como em português, uma palavra específica pra designar namorada (o). Aqui, namorada é Freundin, namorado é Freund (leia-se aqui fróind, ali fróindín), que é a mesma palavra para amigo(a). Se você quiser que a pessoa entenda, trate de ser claro, na entonação, no olhar, no gestual, como preferir. Mas se disser simplesmente “Da ist meine Freundin”, é bem possível que o interlocutor pense que você namora a fulana que você apontou – eu já me enrolei algumas vezes comentando sobre alguma amiga, que na cabeça da pessoa com quem eu estava conversando ficou muito tempo sendo minha namorada. Ainda que a outra versão também não seja rara - falar de uma namorada, e ela ser considerada só amiga.
Agora, vem a pergunta. Por quê?

Se formos pensar a respeito, há duas possibilidades mais óbvias – embora nenhuma das duas tenha muita lógica: primeira – durante séculos, a relação entre meninos e meninas foi restrita a situações de absoluto controle parental, com proibições de todos os tipos. Nesse caso, é claro que, se num determinado momento mágico de sua vida, ao menino era dada a possibilidade de ter uma “amiga” ou a garota um “amigo” – o que era mais acintoso ainda (por que ele talvez pudesse fazer “amigas” entre as raparigas de vida fácil e trata fina), era óbvio, por convenção, que a nova parceira, além de namorada, viria a ser noiva e esposa do dito cujo – e mais ainda um insofismável marido, no caso da garota. Não havia a possibilidade de um garoto ter uma amiga, ou vice-versa, como hoje há, até demais, diga-se de passagem.

Segunda hipótese: sempre que um garoto (ou uma garota, claro) tem uma amiga, significa que os dois podem agir como namorados, ou seja, toda amiga é uma namorada, amante, cacho ou affair oficial e o cara pode sair beijando e apalpando quem ele quiser por que tá tudo liberado. E vão-se rios de dinheiro com flores e bom-bons no Valentine’s Day. Tenho a impressão que não é por aí. Se tiver que apostar em uma, aposto na primeira. Mas como não tenho que apostar em nenhuma, dane-se. Vai ver que simplesmente o alemão não está nem aí pra isso, sei lá.

Quantos mal-entendidos podem ocorrer vindo daí? Vários. Especialmente se você não domina o idioma – e esse exemplo é apenas um entre centenas de possibilidades de gafes e erros dramáticos.

Por isso eu gosto sempre de encontrar a palavra mais adequada, aquela que dá menor margem para interpretações independentes. Obnubilado, por exemplo. Está claro: prefixo “ob”= interrompido, como em obstáculo + nubilado, de nuvem. Um sujeito obnubilado está preso nas nuvens. Em geral as palavras mais antigas são mais assertivas. As piores são as gírias. Essas sempre tem que ser explicadas. E sempre desaparecem pra dar lugar a novas, que trazem invariavelmente suas estapafúrdias explicações (no mais das vezes totalmente justificadas). Que tal "vassourou" (dito "vassorô!")? ou "passei na seda"? Nem tente, não é o que você está pensando que é. Procure na Wikipédia ou pergunte pro seu irmão mais novo.



Mas algumas expressões são adequadas demais. Como o Verbo Divino, servem como chaves para a entrada num novo Universo.



É por isso que eu não entendo quando uma pessoa diz a outra “te amo” se não sente exatamente o que as palavras “te amo” querem dizer, com toda a sua intangível complexidade. Uma coisa clara é dizer, “te amo, meu filho”, ou “te quero como amigo” (ai, coitado), ou “cara, eu adoro esse sujeito!” – mas dizer apenas “te amo” é pra poucos e bons. Por que “te amo” não explica nada, e nem é pra explicar. É algo que não apresenta nenhum caminho e ao mesmo tempo carrega o ouvinte para um maremoto de possíveis sensações (cujos matizes dependem da sua correspondência ao amor do outro, óbvio) e a infinitas hipotéticas reações. Quem diz “te amo” tem que saber muito bem o que diz – mesmo que nunca possa explicar. Não é uma frase banal, não é pra ser usada como “beijo, tchau” e desligar o telefone.

Durante anos eu fui incapaz de dizer às minhas namoradas esse fatídico “te amo”. Por duas razões, acredito. Uma que eu tinha a impressão de que essas duas palavras revelavam um segredo que eu ainda não conhecia: eu tinha impressão de que aquilo que eu sentia ainda não podia ser amor, que amor era algo mais. Em alguns casos estava certo. Então, sentia que se dissesse “te amo” sem absoluta certeza de que o que eu sentia era amor, estaria desperdiçando algo muito precioso e finito, como se ao dizer eu gastasse um pouco daquele amor na entrega. Queria ter provas pessoais de que meu amor não seria diminuído ao colocá-lo em palavras (elas sempre foram capitais pra mim), que fosse o que fosse meu sentimento, ele não se esfiaparia de repente numa frase. Sobretudo não queria dizer isso de maneira banal, como nas novelas da globo, ou como quem pede um cachorro-quente no fim da balada. A segunda razão é que eu tinha uma certa vergonha. Um certo pudor. Isso já merecia uma explicação mais longa, diante da minha analista, acho. Tem a ver com a passagem rápida e forçada da infância para a responsabilidade adulta implícita na convivência com a doença e morte de minha mãe. Minha primeira namorada (e a primeira mulher que eu beijei) surgiu quando eu tinha 17 anos, e não muito depois perdi minha mãe. O que me fez, durante muitos anos, um cara duro e em certa maneira, insensível – dizer “te amo” parecia muito meloso pra mim, naquela época. Algumas moças ficaram bastante desoladas com essa minha falta de consideração, mas fazer o quê, o tempo educa com o tempo. Aprendi , depois. Hoje não hesito em dizer, quando percebo que amo – acho bonito e tenho certeza que engrandeço o Cosmos assim. E da vida nada se leva, convém lembrar.

É por isso então, que eu recomendo aqui de baixo: não diga “te amo” se você não ama de fato. Pro seu filho ou sua filha, está claro, não precisa nem pensar, diga sempre. Igual vale pro seu pai, sua mãe ou seus irmãos. Seu cachorro, se quiser, ele não vai entender a palavra, provavelmente, mas vai perceber muito mais do que você pensa. Pra todos esses pode dizer sem medo.

Mas a alguém que te ama, como um homem ama uma mulher ou uma mulher ama um homem ou as possíveis variações, alguém que te ama especialmente, e não é correspondido da mesma forma, não diga nem debaixo de chantagem. Você pode estar jogando a pessoa e a si mesmo (a) num caldeirão cármico imprevisível. Seja claro (a), e aguente as consequências, por que é melhor.

Na mitologia grega, a última coisa que restou na Boceta de Pandora, após a libertação de todos os males, foi ἐλπίς (elpís) – em geral traduzido como esperança. No entanto, essa espera é mais adequadamente traduzida como antecipação, e no mito referia-se provavelmente à antecipação de todos os males (de que os homens foram felizmente poupados).

Ao declarar “te amo” sem de fato amar, você não está soltando o último mal da Caixa de Pandora sobre a pessoa que te ama. Você está prendendo ela dentro da caixa com ele.