domingo, 15 de novembro de 2009

Sir Percival

Ele punha as mãos na cintura, empertigado e tranquilo, dava um trago no cigarro e soltava a fumaça num suspiro satisfeito. Olhava a luz do sol batendo na água da represa e dava um sorriso. Ou então, muito sossegadamente sentava na grama após o churrasco e ficávamos todos, pais, mães e filhos, batendo um papo preguiçoso no fim de tarde. Era assim Percival Brosig.

Eu devia ter uns treze ou catorze anos. Estávamos passando o carnaval na praia, me divertia maltratando um atabaque enquanto a casa toda batucava e cantava Jorge Ben, Fio Maravilha, Charles Anjo 45 e um desfile de outros malandros. E ele dizia, como um bordão do feriado: o que eu não quero é tra-ba-lhar! Numa das noites, eu dormi na rede, na varanda (era o único adolescente da casa, estava livre pra novidades). Achei que ia ser fácil, afinal tanta gente consegue... que nada. Mosquitos, muito frio de madrugada, foliões bêbados cantavam a altos brados. O sol nasceu e Perci surgiu logo depois, vinha manso pela rua, pisando macio, os cabelos em revolução. Tinha passado a noite na farra, como um bom brasileiro, e ia pro seu justo descanso.

São muitas lembranças coloridas e fortes desse cara. Eu olhava pra ele e via um amigo, um tio, um tutor - e aprendi com ele sobre jeitos especiais de se ver as coisas que outras pessoas não tem. Sobre batalhar e não deixar o astral cair mesmo quando a vaca já atolou. Aliás, Perci foi meu mestre de desatolamentos - junto com meu pai, tiramos inúmeras vezes as nossas brasilias e variants da lama, durante toda a década de 80. Hoje a gente raramente atola, mas quando o barro da estrada fica mais grosso e o carro desliza, impossível não sentir uma sensação familiar de prazer e desespero.

Por que o Perci tinha os braços fortes e uma ossatura de guerreiro teutônico - eu era menino e ficava admirado. Ele não tinha rodeios nem frescuras - tacava a mão na bicheira do cachorro e limpava a ferida sem nem piscar, a camisa toda salpicada de sangue. Reclamava só do absurdo que era deixar o bicho chegar naquela situação, que aquele povo era muito ignorante. Apertava porcas, parafusos e dobrava arames pra qualquer gambiarra com a mesma destreza que sentava na prancheta e desenhava delicadezas. Era o modelo, ao lado de meu pai e raros outros homens, daquilo que eu queria ser e ter, além de barba e voz grossa.

Quando fiquei sabendo que ele não estava bem, me deu um aperto. Mandei um email pra ele, dizendo essas coisas, de minha admiração por ele. Eu estava na Alemanha e não podíamos nos ver. Eventualmente nos falávamos por Skype, e eu acompanhei os acontecimentos através do meu pai.

Foi ele quem me ligou ontem pra dizer, entre soluços, que Perci tinha nos deixado enfim. Foi um telefonema de poucos segundos, por que nenhum de nós conseguiu mais falar. Eu tive o peito de repente cheio até a boca duma onda de saudade e carinho tão grande que cheguei a sentir calor. E duas ou três lágrimas contidas e discretas, mas insistentes, me tiraram da sala de reunião - a vida prosaica do cotidiano sendo atravessada pelas hordas bárbaras do imprevisto lancinante.

E agora eu só posso saber disso, dessa saudade e desse carinho que ficam e vão ficar, do amor pelo que eu vivi e aprendi, pelas pessoas que ganhei com ele - Vivi, Emília, Tutu, Tuca e todas as crianças que eu ainda não conheço. Amor pelos caminhos cruzados, pelas noites brincando com a turma na Rua Bocâina, as viagens e o cheiro de terra e borracha e chuva e motor molhado, churrasco e água de rio, lapiseiras, réguas T e cimento, cigarro e festa.

Lá se foi o irmão de todos nós.

domingo, 20 de setembro de 2009

O Bote

Meu deus, ele disse.

Seu corpo está tremendo. O rosto cheio de bolhas de sol, se curva pra molhar o pescoço. Patético. O marinheiro morto vai boiando no verde escuro. Meus braços estão tremendo também, esforço demais. O bote é pequeno e raso, mas estamos muito fracos, o cara era pesado. Muita fome. Ele não tira o olho, finge que está dormindo, mas não tira o olho. As costas na tábua, uns trapos pra proteger do sol. Não gosto desse cara. De papo mole com a Roberta o feriado todo. Antes da porra da lancha pegar fogo e afundar. Não sei cadê a Roberta. Queria comer minha mulher, né safado? Vai morrer de fome igual eu, igual o coitado do marinheiro. Babaca escroto. Estou tonto, sinto o pescoço latejar apoiado na madeira. Os lábios queimam, minha pele escamando feito estuque. Cheiro de sal. Pelo menos ainda temos água. Pra uns dias. Penso um tortelini. E apago.

Acordo, puta frio, madrugada. Um monte de estrelas, lua baixa. Consigo erguer a cabeça. Ele está ali, branco. Dormindo? Ou morreu. Vai ser foda se ele morrer. Não estou a fim de ficar sozinho nesse vazio. O frio me dá um pouco de força, tento sentar. Não dá. Escorrego as costas na bóia, feito uma foca. Tomo uma tampinha de água. Algumas tampinhas por dia. Faz o que? Dez ou doze dias. Uns quatro ou cinco sem comer. Me lembro da Roberta. Os pelinhos arrepiando na maresia. Roberta, a perfeita. Puta fome. Procuro qualquer coisa na linha do mar, tudo embaçado. Tento levantar, espremo os olhos. Nada. Deito de novo, exaurido.

Quantos dias já? Quinze? Vinte? Tudo misturou. Ouvi um avião passar, hoje. Acho. Ou ontem. E a voz da Roberta, gritando. Meus pés estão dormentes, molhados. Acho que ele quer me matar. O puto. Perdemos a faca faz tempo. Então ele vai me sufocar. Tem fome, dor, geme muito. Ele escondeu a faca, tenho certeza. Pra me matar. Tenho que achar. Me viro pro lado. Sonho.

É fim de tarde, tudo amarelo demais. O mar calmo, dá pra ouvir as marolas roçando a bóia. Estou encostado, de frente pra ele. Dez dias sem comer, dois dias sem água. A faca brilha na mão dele. Por que não me matou quando eu dormi? Vem, puto. Vem buscar.

Ele não se mexe. Há horas. Toco seu pé com o meu. Nada. Me arrasto, chego mais perto. Está morto. A fome.

Pego a faca.






(Exercício da oficina com Marcelino Freire na Casa das Rosas - conto de até 25 linhas com tema secreto, presente no subtexto - "canibal")

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Caramelos a uma Dama Louca

(A Time it Was - Curitiba 2005)

Eu já tinha me esquecido - e foi numa dessas nossas noites que me lembrei.

Por que te ver assim, nua, me olhando, eu ali feito um tabuleiro de xadrez e você me analisando.

Todos esses anos distante serviram pra me refazer, foram anos de reposição das latas de pensamento nas prateleiras da mente - latas que você ajudou a bagunçar e derrubar no chão, você com sua loucura e sua energia descontrolada. A mesma energia que me fez sofrer tanto há alguns anos atrás, a mesma dureza asfáltica que me levou pra outro hemisfério - que me fez, combalido, te abandonar por novas aventuras.

Longe de você, aprendi mais de mim. Aprendi a ser sozinho e, sozinho, a viver minhas paixões - paixões de terra e de céu, de coração e de braços. Foi longe que pude ver que eu ainda tinha muito homem dentro de mim - apesar do tanto de mim que se moldou burilado nas tuas iras e nas tuas alegrias - descobri que você me lapidou, mas a gema bruta da minha força nasceu comigo. E que por isso, todo meu amor é meu, e não seu. E é por isso que eu consigo voltar e te ver e saber que te amo ainda, e que isso não me dói. Ao contrário, posso ver que com toda a tua grandeza, toda a tua força, eu agora não tenho dúvidas de que sou maior, muito maior e mais forte - e por isso te domino.

E agora que nos reencontramos, eu exploro tuas fendas, teus infernos e paraísos - caminho por tuas curvas em deliberada atitude de Senhor das glebas, e minhas pernas se trançam nas tuas tramas, embebidas dum querer tranquilo e inquebrantável.

Nos reencontramos há tão pouco tempo, e mesmo assim tanta coisa emergiu - pensamentos que ficaram no passado, idéias a se ter que eu, aflito, abandonei no limbo da ausência. Agora me voltam essas idéias, planos para nós dois, sonhos de convivência e crescimento mútuos. Te quero linda, forte e equilibrada, brilhante e cheia dos teus mistérios - como sempre foi pra mim. Vejo a malícia que é tua atmosfera, a velocidade de pensamento que te marca. Um fluxo dinâmico de palavras e cores e sons, tudo isso me apaixona, me re-apaixona.

Eu paro e te observo absorto. Teu presente é vivo, pulsante. Eu te toco, te cheiro, te ouço. Me sinto um menino explorando o quintal dos avós.

Por que eu nasci e cresci nas tuas ruas, sou asfalto dos teus caminhos - por que te chamam de metrópole, o terrível abismo urbano brasileiro, o liquidificador de almas - te chamam São Paulo. Eu te chamo minha cidade, meu amor.

(Fossile - Wuppertal 2007)

terça-feira, 30 de junho de 2009

O Crepúsculo dos Deuses

Uma semana de dizer adeus.

Quando eu era menino, reunimos um grupo de garotos na escola para dançar o break, em voga na época. Michael não dançava break, Michael dançava Michael. E nós olhavamos maravilhados aquele magrinho estranhíssimo (não sabíamos o que ele queria dizer, não sabíamos se ele queria ser homem ou mulher – nós, meninos, fazendo enormes esforços para parecermos homens), e ele deslizava no chão como se tivesse molas no corpo, sua música fazendo pular nossos ossos. Dançávamos o break e queríamos ser o Michael (ainda que aos doze anos nenhum de nós fosse admitir).

E continuamos todos sempre querendo ser Michael Jackson, a sua graça e a sua força.

Anos mais tarde, eu estava na casa de minha namorada, Morena, num final de semana. Ela trouxe uma fita de vídeo e colocou no vhs para vermos. Eu não entendi nada, e ela ali, vidrada. Era Pina Bausch. Cafe Müller, se não me engano. Morena se apaixonou por Pina Bausch, foi para a Alemanha e hoje, dez anos depois, está no Tanzteather Wuppertal.

Há alguns anos fui morar em Wuppertal (um destino que me veio cheio de nós antigos para desatar), encontrar Morena – apaixonado e romântico Lord Byron – e tive o privilégio de assistir a várias apresentações de Sacre du Printemps, Cafe Müller e muitos outros espetáculos dessa dama de Solingen. Foi um meu crescimento, e eu agradeço inteiro.

Por isso me doeu saber hoje de manhã - Pina fecha os olhos e aquieta o corpo.

Não sei o que será de Pina Bausch sem Pina Bausch.

Lá fora um céu azul com nuvens que deslizam solenes me lembra uma procissão elegante. As nuvens levam no dorso as almas flutuantes da dança e da música. Quem sabe se num Café Divine ou numa Disco Celeste esses dois titãs não se encontrem, queria imaginar sua conversa: dizer com o corpo aquilo que nenhuma palavra vai dizer.

E dizemos adeus, adeus Michael, adeus Pina.



quinta-feira, 23 de abril de 2009

segunda-feira, 9 de março de 2009

Assento Flutuante

Eu to na pilha de falar uma pá de bugrices aqui hoje. Sem ficar muito calculando táiming. Sem entrar numas de analisar e pá. Tipo, mandar um "poblema é que as condição momentâneas não permite".

Por que tem um negócio.

Eu despenco lá de Wuppertalquepariu, que é no interior mais germanístico da Alemanha (que aliás só tem interior mesmo), onde o hype era ficar tentando ver TV numa TV que não existia ou desenhar carinhas na neve sobre os parabrisas dos carros dos turcos e dos indianos e de uns alemãezinhos ali do bairro. Não, meu nego. Eu atravesso essa água toda, feliz que nem pinto no lixo, pra chegar nessa cidade improvável que é São Paulo e, tchan nam nam: passar o fim de semana inteiro sem encontrar ninguém. A mas vápa.

Tá, encontrei uma pessoa-tatuagem, no finzinho do domingo, mas isso foi tão hors-concours que eu não contabilizo como vida normal. Pessoas tatuagem são essas que ficam, mesmo que você não veja nunca, ela tá sempre lá. Uma vez e é pra sempre. Mas é muito insólito, não conta.

A cidade já começou 2009, né? Cadê então? Me largaram aqui no sofá vendo universal - não a igreja, que deus a tenha. A marca. Marca de filminho. Se não fosse Caetano e Flora. Pelo menos levei eles pra passear. Ela, que os dois eu não consigo dar atenção.

Daí, fiquei pensando. Vai lá, escreve lá. Faz tempo que você não escreve. Mas.
Falar do padre que excomungou? Preguiça. Falar das asneiras da TV, piada pronta? To sem saco. Dia da Mulher? não... não estou à altura no momento. Vai ficar fraco.

Quer saber, não vou falar é nada, quem quiser que pense sozinho. Bugrice não vai faltar pra depois.

Cadê meu sofá? Cença.


ufs...

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Notícias da Cidade

Jovem herdeiro recarrega bilhete de ônibus com 20 mil

Para a família do jovem Heitor Schrottplatz, 23, foi um alívio. Desde o falecimento do pai, o empresário do ramo de cabides Ramires Schrottplatz, o jovem vinha manifestando diariamente um comportamento agressivo e causando complicações com os vizinhos e visitas. Diagnosticado com uma síndrome rara, conhecida como "Sídrome do Cachorro Velho", por causa do comportamento aparentemente canino dos pacientes (como esconder comida em buracos no quintal) Heitor foi considerado incapaz de trabalhar aos 17 anos, por uma junta médica. A partir de então, passou por diversos tratamentos psiquiátricos e terapias, sem sucesso.
O quadro piorou no fim de 2008, quando o pai, que sofria de leucemia, veio a falecer. Heitor passou a fugir de casa nú para defecar em frente à padaria do bairro, além de gritar obcenidades para os passantes. Constrangidos, os familiares procuraram ajuda da vidente Mariazinha D'além, que os aconselhou a perguntar ao jovem a respeito de seus desejos.
Foi a avó de Heitor que descobriu: Heitor gosta de passear de ônibus.
Daquele momento em diante, primeiro com a avó e depois sozinho, Heitor passou a ser passageiro frequente das linhas que ligam seu bairro, Sapopemba, em São Paulo, ao centro da cidade. Com a prática diária, ele agora já circula por toda a cidade, subindo e descendo de ônibus constantemente, seja qual for a linha e o percurso.
Heitor sai às 6 da manhã e pega sempre o mesmo ônibus. Por isso, já ficou conhecido como "o menino maluquinho", e é querido pelos motoristas e cobradores. "Em 20 anos de empresa, nunca vi uma coisa dessas. Ele vai de ponto final a ponto final" diz o motorista Uéllinton, um de seus conhecidos. De fato. Sem parar pra comer, Heitor para apenas alguns minutos em cada ponto. chega em casa sempre às 10 da noite, pontualmente.
Mas o que impressiona, na realidade, é o fato de que Heitor, filho de um dos maiores empresários do país, tenha comprado com sua herança 20 mil reais em créditos do bilhete único, a passagem que funciona para o transporte na cidade. Com esse dinheiro, ele poderá andar de ônibus sem parar por 1242 dias, ou quase 3 anos e meio. "Ele é a alegria das viagens", garante o cobrador Jesuelino Almeida, outro amigo do jovem. Haja alegria, com o trânsito da nossa cidade...



Amor incondicional

O caso seria apenas mais uma história de amor, se não fosse pela natureza insólita dos personagens. Ela, advogada, 42 anos, carioca moradora de São Paulo há 20, situação financeira definida. Ele, 6 anos, simpático cão de raça labrador, boa saúde e trata fina.
Foi enorme a surpresa do tabelião quando Maria, a advogada, chegou no cartório com seu adorado Malaquias e perguntou no balcão: - nós vamos casar. Onde eu preencho os documentos?
Ainda descrente, André, o tabelião, perguntou: pois não senhora, onde está o noivo?
A resposta veio direta: é esse, o Malaquias. "Pensei que fosse videocassetada, pegadinha, sei lá! Olhei pra todo lado procurando a câmera. Mas a mulher estava tão séria que eu acabei entendendo que ela queria mesmo casar com o cachorro. Deus que me perdoe. Esse mundo tá virado..."
Obviamente, André não aceitou o pedido de Maria, o que deixou a advogada bastante contrariada. Tão contrariada que ela mesma chamou a polícia. Munida de uma revista onde o antigo Ministro do Trabalho, Rogério Magri, dizia com todas as letras: "cão também é ser humano", ela garantia diante do atônito delegado que poderia sim, se casar com Malaquias. E completava: não é casamento gay! Ele é macho!
Após um debate caloroso, Maria foi convencida a deixar a delegacia. Mas não se amofinou. No dia seguinte, acampou em frente ao cartório, onde permaneceu mais de uma semana, em protesto pela negativa ao seu pedido. Na frente da sua barraquinha, ao lado da tigela de água de Malaquias, um cartaz explicava: "aqui luta um par romântico pelo seu direito ao amor".
Hoje de manhã, a trupe de teatro de rua "Treato Drua" representou na calçada o casamento de Maria e Malaquias, com direito a padre de mentirinha, vestido, véu e grinalda. No momento do beijo, o Padre Saló (personagem do ator Xuxú Beleza) trocou o texto por algo mais adequado: pode lamber a noiva.
Os dois pombinhos já voltaram pra casa e vivem felizes sua lua-de-mel.