sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
As Minhas Mulheres
Eu não poderia deixar passar em branco um dia como hoje. Poderíamos pintá-lo de escuro nebuloso, ao anunciar a morte do ícone máximo da geração pin-up americana, Bettie Page. No entanto, a imagem da moça seminua, com suas carnes duras e voluptuosas, sorrindo convidativa em fotos e desenhos só pode trazer ao pensamento um dia de sol e cores vibrantes, de alegria e sensualidade. Há quem não entenda nada e veja nos ensaios de Bettie Page uma vulgarização banal, a despersonificação da mulher – que na esteira da sensualidade ingênua das pin-ups dos anos 50 foi subitamente institucionalizada pela revolução porno-editorial de Larry Flint nos anos 70 – mas esses não entendem nada. A pin-up é uma personagem típica do imaginário americano do período pós-guerra (ainda na segunda guerra, os aviões de combate recebiam na fuselagem a pintura de suas musas, pin-ups sorridentes em poses provocativas).
Sua atitude é, no mais das vezes, sexy e pretensamente ingênua. Vestidos que levantam com o vento, cachorrinhos puxando biquinis, penteadeiras com espelhos indiscretos, sempre motivos bem-humorados, sensuais e de certa inocência romântica - ainda que inevitavelmente provocantes. E antes do Photoshop. Antes da lycra, da cirurgia plástica fast-food e da ditadura do alface e do chá das sete ervas... quando mulher podia ter carne por cima dos ossos.
E Bettie Page é a representação máxima dessa sensualidade. De um tempo em que não havia AIDS, em que o amor livre ainda não havia confundido as pessoas, em que a TV não abundava e a excitação, dada a forte repressão e os tabus reinantes, acontecia com meras sugestões sutis. As pin-ups, nas folhinhas de calendários, postais e fotos de revistas, eram as grandes subversivas, atacando com seus sorrisos e suas coxas grossas, seus traseiros empinados e seus mamilos pontiagudos a moral hipócrita da família americana média. Eram o que os rapazes das oficinas, os vendedores ambulantes, os entregadores e todos os jovens chamavam de “cheesecakes”.
Marilyn Monroe está entre elas. Ingrid Bergman, Ginger Rogers, Mae West, Marlene Dietrich, a icônica Bettie Grable, Joan Crawford, Ava Gardner, Judy Garland, Rita Hayworth, La Bardot, Farrah Fawcett, Daryl Hannah, todas foram, em suas épocas, pin-ups em algum momento. Isso pra citar algumas mais famosas.
Pessoalmente, a imagem da pin-up sempre foi pra mim o que, dentro das minhas descrições visuais do corpo da mulher, melhor define meu objeto de desejo. Creio que é uma tatuagem mental pré-adolescente – da época em que eu me fascinava com aviões de guerra e suas lendas. Ficou na minha mente a personagem de Rocketeer, desenhada nos anos 80 e criada à imagem e semelhança de Page.
Eu era menino e via as fotos de bombardeiros e caças e sempre me apaixonava pelas mulheres desenhadas abaixo das cabines dos pilotos, as fotos das atrizes daquela época, com seus olhos baços e distantes. Adolescente, eu queria me apaixonar por uma mulher assim. Aliás, não mudei nada – sou incapaz de conter um suspiro diante do rosto delicado de Ingrid Bergman, um olhar cuja característica aprendi a definir em francês aos 15 anos e pela sonoridade creio fica melhor que em outras línguas – lointain. Lointain parece que vai levar uma eternidade pra ser atingido – e aqueles pares de olhos mirando através do estúdio de fotografia, pareciam olhar as estrelas. Provavelmente olhavam para o mesmo ponto que os bicos dos seios das alegres e saltitantes pin-ups, atravessando meu cérebro no caminho e deixando um rastro cheiroso de expectativas e fantasias.
Mas eu continuo o mesmo menino, parece. Felizmente.
Até a semana passada, na minha cozinha na Alemanha, aterrorizava meu café-da-manhã a imagem bizarra da atraente pin-up gigante de "The Attack of the 50ft Woman". Poster A de filme C. A cozinha eu deixei pros alemães, mas a giganta eu trouxe comigo pra São Paulo.
Bettie Page deixa a terra e uma legião de fãs, muitos dos quais com espinhas na cara e cabelos na palma da mão, afogeados na ânsia do prazer solitário – e outros como eu, que viam e vêem naquele sorriso sem vergonha uma energia feminina indefectível, uma coragem de desfazer nós e tabus com bom humor, a delicadeza brejeira e perfumada – uma flor que desabrocha eternamente, intensamente.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Abre as asas sobre nós.
Eu já ouvi essa frase inúmeras vezes. E concordo com essa idéia.
Porém, o que é que você pensa? Será que você pensa mesmo, ou o seu pensamento é a linha final do pensamento de outro?
No nosso ambiente ocidental ocidentalizado, estamos acostumados a valorizar e dar como certas a liberdade de criação e expressão individual. Mesmo no Brasil, onde a desigualdade social mina a formação intelectual e subrai possibilidades e oportunidades da grande maioria, a criatividade e a comunicação fazem parte de um conceito de contemporaneidade e sofisticação que todos, a despeito de renda ou outra classificação, assumem como virtude e desejam viver.
E eu concordo com isso também. Criar e expressar são valores inestimáveis, e as idéias, transformadas em atos ou palavras, vem há dezenas de milênios transformando cada vez mais o ser humano naquilo que ele é, para bem ou mal – são nosso grande patrimônio enquanto espécie. Talvez o único, de fato.
Mas.
Eu não assisto TV. No entanto, não preciso sair de casa pra conhecer a influência dessa e de outras mídias sobre o pensamento e comportamento dos meus concidadãos. Basta olhar pela janela de casa. A forma como se vestem, como andam com seus filhos. A forma como se beijam (ou não se beijam, aqui nesse país estranho). Os olhares, as palavras, o sexo. Tudo é absolutamente permeado e moldado pelos modelos expostos (impostos?). Ninguém é livre, na verdade. A liberdade é uma farsa. Mas o cerceamento da liberdade não carece de violência ou imposição – ele está para o ser humano como a água para o peixe – o peixe não deseja a água, ele simplesmente vive nela e não sabe (e nem deseja) viver fora. O ser humano simplesmente é aquilo que ele moldou como estrutura social, ele é humano por que é social – e dentro dessa estrutura, a liberdade é tanto mais linda quanto mais utópica. O peixe não percebe a água, e se vê absolutamente livre dentro dela. Claro – que outra opção ele teria?
Antes da TV, antes da globalização, não era assim? Talvez não exatamente. A influência não vinha de um tubo de vidro cuspindo pensamentos pré-formatados. Vinha da boca de outras pessoas, de livros, de professores, de exemplos nacionais. Mas os pensamentos, ainda que diferentes dos de hoje em dia algumas vezes, eram igualmente pré-formatados. Apenas, por conta do regionalismo intransponível, essas idéias eram menos homogêneas.
Na tribo indígena, no Alto Xingu ou na margem do Eufrates, sem TV ou rádio, as mentes eram da mesma maneira ordenadas de acordo com pré-concepções adequadas ao modus vivendi e status quo. Nada muito diferente.
Por isso, continua a pergunta: você é o que você pensa? Ou estão pensando por você? Que idéia realmente sua, que criação sua e expressão apenas sua veio à tona até hoje? Raras vezes essa pergunta vai ser respondida com um exemplo que faça jus. Você pode me dizer, e vai estar certo: mas, Daniel, é claro, todas as nossas criações pessoais são somas e traduções e sínteses de idéias que já existem, ninguém tira algo do nada. Sim, mas não é disso que eu estou falando. Não estou falando de criar arte, de criar um novo pensamento filosófico, uma nova solução para os problemas do mundo. Estou falando de coisas simples. Da maneira como olhamos a pessoa ao lado no ônibus, ou os pedestres através da janela blindada do carro. De como registramos internamente o mundo, a gente, os eventos.
Alguma vez você já teve a sensação de que aquela idéia que surgiu automaticamente na sua cabeça ao se deparar com algo novo (seja conhecer alguém, receber uma sugestão diferente para resolver um problema, viajar e ver outra cultura), aquela idéia que você sempre tem sem saber de onde vem (e que se assemelha no mais das vezes a um escuro NÃO) não é necessariamente sua, que ela foi plantada ali por anos de educação (ou des-educação) formal, de bombardeamento midiático, de um ataque maciço incessante de fórmulas pré-concebidas e convenções? Ora, mas eu não, eu sou muito crítico, eu tenho muita sensibilidade, eu sou muito intuitivo, eu não julgo as coisas, eu deixo rolar, eu eu eu.
Preste atenção: não há EU. Você é o que fizeram e estão fazendo com seu pensamento. Você é qualquer outra coisa, menos você absolutamente. E quando eu digo “fizeram”, tenho que me corrigir e dizer “fizemos e estamos fazendo com o nosso pensamento”. Ou não somos a sociedade, ou não somos nós os responsáveis? Ou não somos nós os cordeiros, afáveis e cordatos – desde que nos dêm nossa novela, nosso programa de domingo-pizza-fantástico (ou cinema, para os que podem pagar). Nos basta o Jornal Nacional, a Folha de São Paulo, a Veja. Mas não, Daniel, eu leio, eu leio muito. Leio livros, outras revistas, sou antenado. Antenadíssimo, meu caro, você está antenadíssimo. Provavelmente você vai de uma hora pra outra regurgitar o que leu em cima do meu cachecol. Vai chegar com máximas políticas, com pensamentos filosóficos – que você pode até conhecer a fundo. Mas me diga algo novo, seozé. Você é mais um títere – só é mais paramentado – tem mais articulações.
Desculpe. Não há saída. Eu não tenho uma pílula vermelha que vai te arrancar do sistema.
Voltando: o peixe não percebe a água, e se vê absolutamente livre dentro dela. Claro – que outra opção ele teria?
Evoluir, talvez.
Foi um peixe igual a outros que saiu da água um dia, um instante, e sem perceber começou com tudo o que temos de vida sobre a terra (a não ser que você seja criacionista, – por favor me diga se for, eu adoraria conversar pessoalmente – você provavelmente aceita essa hipótese como a mais provável para explicar o passado), um peixe que saiu: literal e metaforicamente podemos dizer que transcendeu.
Eu não tenho a pílula vermelha, mas talvez, eu tenha uma sugestão. Eu não sou nenhum sábio, nenhum guru, e essa idéia não é nova, nem é mais minha do que de muitos outros que já pensaram a mesma coisa. Mas é um caminho talvez interessante.
E é uma sugestão muito simples: preste atenção.
Não se preocupe, não vai durar muito – a vida é uma só e não demora. Você consegue, não é tão complicado. Com um pouco de treino vira um hábito.
Preste atenção ao momento. Ao presente – preste atenção ao que está em volta. Abra o olho. Preste atenção – o que está ao seu lado não é pré-concebido. É apenas nesse momento que está acontecendo – das zilhões de possibilidades intermináveis, essa que está aí, no momento, é a que está no foco. Ela é simples, insubstituível e essencial. Então não desperdice, olhando como se já esperasse. Você não esperava. Absorva o momento, esteja inteiro ali – onde mais você quer estar? Onde mais você pode estar?
Isso é apenas não perder a oportunidade de usufruir daquilo que está sendo dado.
Não há como pré-conceber o presente. O instante real, aquele que está sendo vivido, aqueles doze segundos entre o que já foi e o que vai ser, não há como julgar. Ele não é uma expectativa, ele não é uma consideração ou uma conclusão, ele não permite lentes ou truques de espelho – por isso ele é o real. Preste atenção nele, sem vesti-lo das cascas velhas que nos ensinam a usar para cobrir o que é indesejado – o preconceito. Deseje o presente. O presente nu.
Creio que isso nos levaria muito além.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
O Canto da Sereia
Tá, eu vou tentar entender.
Abre o site, que é pra ser um site de informações e notícias. No que poderíamos chamar de “primeira página” está “estampado”, com certo destaque, a “notícia”: “Carolina Diekmann fica 5 dias sem lavar o cabelo”. Estão me provocando, é algo pessoal – pensei. Quem dera fosse.
É um site jornalístico, de um grupo empresarial grande. E me vem com esse tipo de “notícia”? Eu sei, tem muita gente que vai achar isso interessantíssimo, como assim, ela não lava o cabelo, e blábláblá. Mas é um jornal, de notícias, abrangência internacional. Custa caro, cada pixel naquela homepage vale muito dinheiro. Não vou dizer o nome do jornal, por que na realidade tanto faz, todos eles dão essas derrapadas frequentemente.
Quando eu abro um jornal, quero saber o que está acontecendo no mundo, no país, saber da vida. Mas não isso. Ou até, se quiser, pode ser, mas não na primeira página. Me constrange.
Talvez, eu esteja muito acostumado com a maneira de ver dos meus concidadãos alemães. Aqui na Kartofelândia eles não ligam tanto pra aparência como no Brasil. Eles não estão de fato muito aí pros modelos de beleza – sabem que existem, sabem quem são e gostam de apreciar, mas não são viciados em aparência como nós (me incluo solidária e tristemente). Ao contrário, às vezes ligam tão pouco que chega a ser embaraçoso. Não é raro encontrar alemães com os dentes à moda Maria Elvira de Manuel Bandeira – em petição de miséria. Eles não compram a prazo e não acreditam em creme dental, parece. Eu não ligo. Aliás, em relação a isso, acho ótima a vida aqui. Não há a menor pressão pra ser “O” bonitão da parada, ter a barriga riscadinha, o cabelinho tictic, a roupa Xplus. Não, aqui melhor é você saber coisas, poder conversar inteligentemente e surpreender com seus pensamentos. Até porque eles não são chegados em “primeiras impressões”. A primeira impressão, para os alemães, aquela tal “que fica”, acontece muito depois do primeiro contato. E não é muito fácil ultrapassar a barreira desse(s) primeiro(s) contatos e chegar a causar alguma impressão de fato.
Por isso eles são vistos como frios. Mas olhando com olhos abertos, isso deixa de ser um defeito teutônico, e passa a ser uma qualidade interessante. Por que assim, eles não compram a fachada, a máscara, o verniz, como nós brasileirinhos espertos, costumamos fazer. Aqui, se você é um cretino num carrão, cheio de dinheiro no bolso, bonito e bem vestido, pra maioria das pessoas você é o que é: um cretino.
Uma amiga minha, quando me conheceu, me disse ao me ver escolhendo roupas pra me vestir: vocês, brasileiros, são mesmo “coquetos”, não? Heim? Coquetíssimos, vocês brasileiros...! – no seu sotaque latino-americano hispânico, eu achei graça. Mas depois pensei a respeito um pouco e me deu uma ponta de dúvida – será que isso é bom, ou nós estamos tão enfiados na influência da mass-media que confundimos a beleza com a aparência superficial em tudo e de uma maneira tão intensa que esquecemos o que se passa por trás do cartão de visita? E se for assim, somos uma nação de neuróticos, querendo perder um quilinho a mais aqui, puxar uma ruga ali, gastando rios de dinheiro, tempo e trabalho com futilidades de uma vaidade vã, enquanto outros povos estão estudando as profundezas da terra, da alma ou do próton? Será que estamos vendo TV demais?
“O Brasil é a capital do mundo em cirurgia plástica” – é a opinião de Rahda Syed, presidente da Sociedade de Medicina Estética dos EUA. Curioso, não? Somos uma nação de contrastes, onde a miséria coabita as cidades mais ricas, misturando-se apagada e ruidosa aos carros importados e madames conduzidas por motoristas. Mas isso não importa, ao brasileiro importa muito estar parecido com o modelo que ele vê nos meios de comunicação. Somos o povo que mais faz plástica no mundo. Eta povinho pra nascer errado né? Se não, pra quê tanta correção?
Que pena. Com a abundante e sub-utilizada criatividade escondida nas ruas do país, com toda a entregue alegria com que o povo se dá ao prazer de viver, é triste perceber que muito dessa energia se desvia e se perde em recalques tão desimportantes.
Há um tempo atrás, quando ainda vivia em Curitiba, lembro de descer a serra com algum dos meus irmãos. No meio do caminho, passamos sob um enorme outdoor, onde o rosto de uma belíssima mulher nos olhava provocante, tentando vender alguma coisa. Que obviamente não me lembro o que era. Nós dois comentamos a respeito da beleza estampada, e eu disse, professoral, “linda, mas não é uma mulher. E isso a gente tem que ter sempre na cabeça. Isso que está ali, não é uma mulher”. Ele me olhou um tanto espantado, e disse, “claro que é uma mulher”.
Essa é uma idéia antiga, que se sedimentou em mim durante meus últimos anos em São Paulo.
Convivendo com o meio das produções cinematográficas e toda a entourage envolvida, fui entendendo a partir das minhas experiências afetivas com as belas atrizes e outras profissionais do meio, que muitas vezes sem querer a gente vê a foto, e não a pessoa. E se apaixona pela foto, sem perceber. Tarde demais, eu caía na real e via que a mulher que estava ao meu lado era bem um ser humano – mudança de percepção que podia vir para bem ou para mal. Mas sempre foi surpreendente. Então, passei a notar como todos a minha volta estavam, como eu, enebriados pelas belas fachadas. O glamour. As luzes. O brilho. Um globo espelhado de vaidades, que gira frenético e ilumina as pessoas como a lâmpada atraindo as moscas. Mas as moscas que ali encostam, em geral se queimam.
E eu percebi ali, com as minhas relações, que esse tipo de ilusão na verdade se extendia para além dos namoros e amizadas. Essa ilusão é só mais uma faceta do consumismo histriônico que afeta os ocidentais, em especial os brasileiros e muito intensamente os paulistanos e outros cidadãos de grandes centros. E, devagar, eu fui notando isso em cada gesto dos meus conterrâneos. Na maneira como as pessoas saem pra se divertir. O paulistano vai em três a quatro ou cinco lugares numa noite de sábado – como numa ânsia de ter todas as baladas de uma vez, como se o “imperdível” fosse de fato imperdível. E compra. Gadgets, roupas, badulaques, objetos pra casa, brinquedos com luzinhas que piscam. Somos índios sendo iludidos pelos colares de contas e bolinhas de vidro dos conquistadores do império.
Alguém já parou pra pensar o que isso causa, no final das contas? Pra onde vai toda a porcaria consumida, a quantidade de lixo resultante? E eu posso falar de lixo físico, mas acho que o espectro vai muito além do objetivo (na verdade, sobre o lixo palpável alguém já pensou e colocou em vídeo, assista). No meu caso, levou alguns anos pra recolocar minha pessoa no espaço da realidade – e não sem grandes sacrifícios. Por que a ilusão, essa ilusão de glamour e importância, é como um ópio, enebria e vicia. Todos somos amigos do Rei. É cocaína pura, e de graça. Mas o revertério é brabo.
O clichê “a verdadeira beleza é a interior”, ainda que clichê, deveria ser mais bem arraigado na mente dos nossos brasileirinhos e brasileirinhas. Eu não desprezo a beleza física – sempre fui atraído em primeiro lugar pelo que vi nas mulheres, e só depois pela sua personalidade. Mas isso é óbvio, eu não sou cego, e ainda por cima sou homem. O que me faz altamente susceptível ao contato visual. Mas estou bastante escolado pra saber que mulher bonita pode ser só isso – mulher bonita. E isso não garante nada de nada. Meus amigos matchos que me desculpem, mas um rostinho bonito num corpinho ajeitado não garante nem uma boa noite de sexo – cansei de me deitar com moças esculturais que não sabiam onde o galo canta. Às vezes, não sabiam nem que existe um galo, e que ele pode cantar. Como diz meu primo, "lindas de longe, longe de lindas".
Pode ser a gostosa que for, se não tiver estofo é melhor não gastar tempo. Muito menos lábia, dinheiro, fosfato, o que seja. Não me venha com a conversa de que “você quer ela pra conversar?”. Sim, eu quero ela também pra conversar, minha vida é muito curta, me desculpe. Preciso de mais do que um cartão de visita pra sentir alguma emoção. Afinal, o sexo começa na cabeça (as moças em geral já sabem disso por sua própria natureza). Que diremos do Amor. Se você não descobriu isso ainda, meu caro, está perdendo grandes momentos.
domingo, 29 de junho de 2008
O que vamos colher no Jardim Bizarro?
(Dexter's Red Fountain, Paris)
Eu não consigo resistir.
O nome do lugar é Jardim Bizarro, é isso? Foi o que eu li outro dia. E como diz Homer Simpson, “se a TV está dizendo então é por que tem que ser verdade”. Não foi na TV, por que aqui a TV não funciona, não sei se já comentei. Foi no jornal mesmo, na Folha. No UOL, mais especificamente. Nesse link: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/06/19/ult5772u141.jhtm.
Bom, imagina a cena: o casal de aposentados, ele de cueca samba-canção listrada e regata branca sentado no sofá vendo o João Kléber. Ela acabou de tirar o robe bordô e está puxando a cortininha do box pra entrar no banho. Um barulhinho, PLOP. Ela não dá atenção. Entra, liga a lorenzetti e pensa numa receita de bolo que veio no verso da caixa de aveia. De repente, pelo espelho do armarinho, ela vê uma mancha escura surgir no chão. Abre a cortininha pra ver melhor. A mancha vermelha cresce e se espalha rapidamente pelo chão. Sangue! Ela pôe a mão na frente da boca, num cruz-credo inaudível. Subitamente, o líquido começa a borbulhar e em instantes jorra como um hidrante atropelado dentro do banheiro, sobre os azulejos e sobre o tapete de peixinhos, salpicando as toalhas e as roupas sujas na cesta (Déjà vu: o elevador se abrindo em The Shining). Gritos, ela corre, escorrega e cai na sopa pegajosa (déjà vu: Nick Nolte patinando no sangue - em Cape Fear? não lembro bem). No chão, chorando apavorada, ela chama o marido, que já está forçando a fechadura. Do outro lado, ele vê o rio vermelho sair para o corredor pela fresta da porta. Ela consegue sair do banheiro, os dois correm para a porta da rua. Antes de sair, ele olha pra trás. Na cozinha, a pia transborda, o ralo se levanta em golfadas rubras. Ao fundo, João Kléber espicaça a audiência: “espera só pra ver o que vai acontecer agora! Espera só pra ver o que vai acontecer!”
Bom. Me diz onde é que essas coisas podem acontecer? Que tipo de palhaçada é essa? Como assim?
Segundo a notícia, a polícia confirmou que era sangue humano. Me explica. O tiozinho falou que o sangue jorrava a 15 centimetros do chão, pelos rejuntes. Tá, exagerou. Mas as senhoras católicas que foram rezar e ajudar a limpar a gosma que ficou espalhada na casa confirmaram o resultado do amalucado evento – o cenário deve ter sido algo como Poltergeist. Me diz, que tipo de cogumelo serviram na quermesse? Até o delegado comeu. Ou colocaram ácido na canjiquinha?
Então vamos pensar uma resposta plausível. Os canos do sistema hidráulico da casa enferrujaram e entupiram. A ferrugem tingiu a água com algum vermelho. O vizinho da direita estava matando bois no tanque da lavanderia, e o da direita estava tingindo lençois de vermelho na piscina, e por uma conjunção incomum astronômica, a posição da Lua em relação aos planetas e a Terra, uma maré vermelha raríssima invadiu as estações de tratamento de esgoto da cidade e subiu pelos canos do Jardim Bizzaro. Pronto, eis a equação simples que explica com lógica e naturalidade o ocorrido.
Acho que fazia tempo que não aparecia uma dessas, não? Chupa-Cabras e ET de Varginha (onde foram parar esses ícones da cultura popular?). Agora isso. Que nome daremos? Não consigo pensar em nada original. Caldas Rubras? Pousada do Rio Quente? Fontes de Lestat? Termas da Morte? Sei lá, qualquer um me parece de mal gosto.
Às vezes, quando estou muito cansado ou estressado, em dias de ansiedade e angústia, é mais difícil conseguir dormir. Ainda que meu corpo esteja exaurido, minha mente parece um disco rígido com defeito, como CD riscado. Nessas noites, sem perceber, acabo entrando num ambiente mental muito peculiar. Quando isso acontece, digo adeus ao descanso. Por que sou assaltado por uma série de imagens cinematográficas (da melhor produtora do mundo – The Tormented Soul, talvez um tipo de Alter Ego a la Vincent Price) de todos os tipos de terrores. A lista é extensa, e inclui torturas, mutilações, câmaras da morte, processos inquisitoriais, personalidades monstruosas e monstros per se e muito sangue. Nem parece vir desse bom moço que eu sou. Com sorte, durante esse processo perturbador, eu participo apenas como observador (como se fosse um Alex DeLarge preso a uma cadeira de cinema e obrigado a assistir cenas de violência em Laranja Mecânica).
Meu controle sobre esses pesadelos no pré-sono é bastante relativo. No entanto, descobri que posso ao menos direcionar essa violência para personagens determinados, e assim compensar a possível culpa interna. Ou seja, em noites de angústia, escalpelo Hitler, Stálin, Paulo Maluf, Josef Fritzl, Josef Menguele, faço tirinhas de Trujillo, Mobutu, Franco, Salazar, Pinochet, mergulho a junta militar e os presidentes subsequentes em óleo fervendo, deixo Collor, Sarney, Champinha e Conde D'Eu secarem no sal cortados até o toco, e toco fogo numa multidão de déspotas, assassinos, fascínoras e outros desafetos. Enfim, a fila é grande na escada que desce ao porão. São minhas vinganças pessoais generalizantes atemporais. Algum trauma de infância? Ou simples sadismo bem distribuido? Não penso muito a respeito. Mas para alguns desses persongens reservo destinos terríveis.
(obra do artista Boaz Arad exposta no Centro de Arte Contemporânea de Tel Aviv)
Um deles é imaginar a possibilidade de entrar nos sonhos de cada ditador e descobrir no fundo da sua humanidade esquecida onde está o seu ponto fraco, qual é o seu maior medo, seu inferno. E a partir disso, criar o cenário terrível que ele vai viver para sempre, cada noite da sua vida. Até que ele não tenha mais coragem nem de deitar. Acho que em A Cela existia um sistema desses, de entrar nos sonhos de psicopatas. Será que sou eu o psicopata? Bom, quem dirige essas cenas na ilha de edição da minha mente atordoada com certeza não é nenhuma Pollyana.
Imaginei essa cena do Jardim Bizzarro assim, como um sonho terrível de vingança. Em Poltergeist ("they are here...") é isso que acontece, não? Os fantasmas do antigo cemitério sobre o qual a casa foi construida voltam pra se vingar da invasão. Mas o que será que os aposentados fizeram de errado? Não pagaram o Carnê do Baú? Faltaram no sermão do domingo? Comeram carne na semana santa?
O que me espanta de fato não é o caso dessa notícia aparecer na mídia – quem nunca ouviu falar de Bebê Marciano, cobra de três cabeças, a loura fantasma no banheiro e outras divertidas, (umas nem tanto) lendas urbanas? A internet pulula com o Freakshow do cotidiano. Mas, sair na Folha? E na Band? Ok, não que eu seja crédulo com o jornal só pelo fato de ser jornal (minha mãe era jornalista e eu convivi e convivo com esse meio cavernoso). Mas é o tipo de notícia pra imprensa marrom, não? Coisa pro escalafobético Notícias Populares, também já falecido.
O mundo está virado. Vai ver que é isso. O mundo está virado, e o sangue não está jorrando – está caindo pra cima.
sexta-feira, 20 de junho de 2008
domingo, 15 de junho de 2008
Words, words, words. Hamlet, ato 2, cena 2.
Poucas coisas podem ser mais traiçoeiras que um mal-entendido.
Num mundo onde a linguagem é o que nos difere dos animais (em grego, zoon phonanta, um animal que fala), a comunicação entre pessoas é um universo complexo e interessante. A mim sempre me interessa descobrir origens e significados das palavras, relações entre termos em diferentes idiomas e, quando não me dou por satisfeito ou não encontro resposta, criar eu mesmo esses significados e relações. Como diz Saramago, "com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas."
Imagine, por exemplo, Deus. Assim, simplesmente.
Lá, antes do universo existir, no escuro Ele inventa a frase que vai trazer para a existência o Cosmos e a Si mesmo (o tal do Verbo que no princípio, fez-se). Essa frase é a Suprema Chave, a ignição do Big Bang. E Deus, sem muita criatividade pra frases (vai usar toda nos próximos sete dias, não quer desperdiçar), define que Tudo (Tudo, Tudo mesmo) será criado a partir da sentença "E Então Nasceu o Elefante" - não havia ali ninguém pra argumentar que a frase não fazia sentido ou era ridícula, portanto dava na mesma - ela seria o código para o nascimento do Mundo e pronto. Definida a frase, Ele a anota para ser pronunciada no momento propício. No entanto, no escuro e ainda sem grande pratica em escritas (isso ele ia ter que praticar mais tarde antes de entregar o livro a Moisés), escreve a frase num papirinho (fica mais bíblico que papel), só que troca a posição do "e" e do "a" e o "f" escrito numa caligrafia incipiente fica mais parecido com um "g" e no script da Vida sem querer a frase vira "E Então Nescau Elegante". Percebe o que poderia ter acontecido? Imagina só o que poderia ter sido criado com esse divinamente prosaico mal-entendido. (Vai ver que aconteceu assim e a gente nem tá sabendo... ou está?).
Ou seja, palavras. O negócio é ficar amigo delas. Eu tento.
Por exemplo. Tirem as crianças da sala, vou falar não um mas vários palavrões, em mais de uma língua. A palavra que mais me apraz entre as de baixo calão para me referir ao magnífico aparato sexual feminino é, perdoem-me, buceta. Impossível proferir essa palavra sem encher a boca, como se cheia do sublime artigo ela de fato estivesse – um cunilíngue oferecido de maneira abandonada e entregue decerto é no mundo táctil das interrelações humanas o mesmo que, para uma boca solitária, encher-se de ar e dizer numa bolha de prazer voluptuoso: buceta. Atentem, por favor, não estou necessariamente querendo impor quaisquer conotações sexuais ao ato de dizer, além das que já aí estão. Por que nem só de prazer vive na boca das pessoas a palavra buceta. Afinal, quanta gente não usa o termo quando se indigna com alguma coisa, ou para expressar sua frustração com algo que não deu certo? (embora eu pessoalmente não entenda exatamente a relação entre a periquita e uma martelada no dedo – mas cada um com seus problemas). Gostaria apenas de observar especificamente a mecânica prazeirosa e suavemente explosiva da palavra. Observado? Passemos adiante.
Pois bem, aqui na Alemanha, a palavra equivalente para buceta é Muschi (assim com maiúscula pra respeitar a gramatica teutônica, em que substantivos levam capital letters no início).
Ora, uma meia sinapse de ostra letrada nos faz formular a seguinte equação para explicar a origem dos termos: caixa, bolsa, recipiente (em português) tem o equivalente latino boceta, [vide Boceta de Pandora (mas aí é outro mal-entendido bem mais radical)]. A boceta (que obviamente derivou em português para buceta, não precisa nem dizer) por sua vez com o passar dos séculos foi ganhando novas e mais práticas formas, entre as quais a popular mochila. Ora, não me parece absurdo pensar que a expressão Muschi seja dessa maneira aparentada diretamente com a nossa (?) popular buceta. No mínimo uma prima de segundo grau, eu ousaria afirmar. Ora, num país em que as pappas incas, chamadas pelos italianos de tartufoli, foram transformadas em Kartoffeln, que mal haveria em fazer do Rucksac latino mochila uma Muschi acolhedora e cheia de segredos?
Tragam as crianças de volta, acabou a baixaria intelectualizada (seria apenas um pretexto pra cair de boca na botija?). Mas continuamos no assunto. Com mais sutileza, maestro, por favor.
Em alemão não existe, como em português, uma palavra específica pra designar namorada (o). Aqui, namorada é Freundin, namorado é Freund (leia-se aqui fróind, ali fróindín), que é a mesma palavra para amigo(a). Se você quiser que a pessoa entenda, trate de ser claro, na entonação, no olhar, no gestual, como preferir. Mas se disser simplesmente “Da ist meine Freundin”, é bem possível que o interlocutor pense que você namora a fulana que você apontou – eu já me enrolei algumas vezes comentando sobre alguma amiga, que na cabeça da pessoa com quem eu estava conversando ficou muito tempo sendo minha namorada. Ainda que a outra versão também não seja rara - falar de uma namorada, e ela ser considerada só amiga.
Agora, vem a pergunta. Por quê?
Se formos pensar a respeito, há duas possibilidades mais óbvias – embora nenhuma das duas tenha muita lógica: primeira – durante séculos, a relação entre meninos e meninas foi restrita a situações de absoluto controle parental, com proibições de todos os tipos. Nesse caso, é claro que, se num determinado momento mágico de sua vida, ao menino era dada a possibilidade de ter uma “amiga” ou a garota um “amigo” – o que era mais acintoso ainda (por que ele talvez pudesse fazer “amigas” entre as raparigas de vida fácil e trata fina), era óbvio, por convenção, que a nova parceira, além de namorada, viria a ser noiva e esposa do dito cujo – e mais ainda um insofismável marido, no caso da garota. Não havia a possibilidade de um garoto ter uma amiga, ou vice-versa, como hoje há, até demais, diga-se de passagem.
Segunda hipótese: sempre que um garoto (ou uma garota, claro) tem uma amiga, significa que os dois podem agir como namorados, ou seja, toda amiga é uma namorada, amante, cacho ou affair oficial e o cara pode sair beijando e apalpando quem ele quiser por que tá tudo liberado. E vão-se rios de dinheiro com flores e bom-bons no Valentine’s Day. Tenho a impressão que não é por aí. Se tiver que apostar em uma, aposto na primeira. Mas como não tenho que apostar em nenhuma, dane-se. Vai ver que simplesmente o alemão não está nem aí pra isso, sei lá.
Quantos mal-entendidos podem ocorrer vindo daí? Vários. Especialmente se você não domina o idioma – e esse exemplo é apenas um entre centenas de possibilidades de gafes e erros dramáticos.
Por isso eu gosto sempre de encontrar a palavra mais adequada, aquela que dá menor margem para interpretações independentes. Obnubilado, por exemplo. Está claro: prefixo “ob”= interrompido, como em obstáculo + nubilado, de nuvem. Um sujeito obnubilado está preso nas nuvens. Em geral as palavras mais antigas são mais assertivas. As piores são as gírias. Essas sempre tem que ser explicadas. E sempre desaparecem pra dar lugar a novas, que trazem invariavelmente suas estapafúrdias explicações (no mais das vezes totalmente justificadas). Que tal "vassourou" (dito "vassorô!")? ou "passei na seda"? Nem tente, não é o que você está pensando que é. Procure na Wikipédia ou pergunte pro seu irmão mais novo.
Mas algumas expressões são adequadas demais. Como o Verbo Divino, servem como chaves para a entrada num novo Universo.
É por isso que eu não entendo quando uma pessoa diz a outra “te amo” se não sente exatamente o que as palavras “te amo” querem dizer, com toda a sua intangível complexidade. Uma coisa clara é dizer, “te amo, meu filho”, ou “te quero como amigo” (ai, coitado), ou “cara, eu adoro esse sujeito!” – mas dizer apenas “te amo” é pra poucos e bons. Por que “te amo” não explica nada, e nem é pra explicar. É algo que não apresenta nenhum caminho e ao mesmo tempo carrega o ouvinte para um maremoto de possíveis sensações (cujos matizes dependem da sua correspondência ao amor do outro, óbvio) e a infinitas hipotéticas reações. Quem diz “te amo” tem que saber muito bem o que diz – mesmo que nunca possa explicar. Não é uma frase banal, não é pra ser usada como “beijo, tchau” e desligar o telefone.
Durante anos eu fui incapaz de dizer às minhas namoradas esse fatídico “te amo”. Por duas razões, acredito. Uma que eu tinha a impressão de que essas duas palavras revelavam um segredo que eu ainda não conhecia: eu tinha impressão de que aquilo que eu sentia ainda não podia ser amor, que amor era algo mais. Em alguns casos estava certo. Então, sentia que se dissesse “te amo” sem absoluta certeza de que o que eu sentia era amor, estaria desperdiçando algo muito precioso e finito, como se ao dizer eu gastasse um pouco daquele amor na entrega. Queria ter provas pessoais de que meu amor não seria diminuído ao colocá-lo em palavras (elas sempre foram capitais pra mim), que fosse o que fosse meu sentimento, ele não se esfiaparia de repente numa frase. Sobretudo não queria dizer isso de maneira banal, como nas novelas da globo, ou como quem pede um cachorro-quente no fim da balada. A segunda razão é que eu tinha uma certa vergonha. Um certo pudor. Isso já merecia uma explicação mais longa, diante da minha analista, acho. Tem a ver com a passagem rápida e forçada da infância para a responsabilidade adulta implícita na convivência com a doença e morte de minha mãe. Minha primeira namorada (e a primeira mulher que eu beijei) surgiu quando eu tinha 17 anos, e não muito depois perdi minha mãe. O que me fez, durante muitos anos, um cara duro e em certa maneira, insensível – dizer “te amo” parecia muito meloso pra mim, naquela época. Algumas moças ficaram bastante desoladas com essa minha falta de consideração, mas fazer o quê, o tempo educa com o tempo. Aprendi , depois. Hoje não hesito em dizer, quando percebo que amo – acho bonito e tenho certeza que engrandeço o Cosmos assim. E da vida nada se leva, convém lembrar.
É por isso então, que eu recomendo aqui de baixo: não diga “te amo” se você não ama de fato. Pro seu filho ou sua filha, está claro, não precisa nem pensar, diga sempre. Igual vale pro seu pai, sua mãe ou seus irmãos. Seu cachorro, se quiser, ele não vai entender a palavra, provavelmente, mas vai perceber muito mais do que você pensa. Pra todos esses pode dizer sem medo.
Mas a alguém que te ama, como um homem ama uma mulher ou uma mulher ama um homem ou as possíveis variações, alguém que te ama especialmente, e não é correspondido da mesma forma, não diga nem debaixo de chantagem. Você pode estar jogando a pessoa e a si mesmo (a) num caldeirão cármico imprevisível. Seja claro (a), e aguente as consequências, por que é melhor.
Na mitologia grega, a última coisa que restou na Boceta de Pandora, após a libertação de todos os males, foi ἐλπίς (elpís) – em geral traduzido como esperança. No entanto, essa espera é mais adequadamente traduzida como antecipação, e no mito referia-se provavelmente à antecipação de todos os males (de que os homens foram felizmente poupados).
Ao declarar “te amo” sem de fato amar, você não está soltando o último mal da Caixa de Pandora sobre a pessoa que te ama. Você está prendendo ela dentro da caixa com ele.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
Graxa na veia
1. Gasolina - esse pra mim é o mais bizarro de todos. Mas eu, quando era criança, adorava sentir cheiro de posto. Quando parávamos pra abastecer eu punha o rosto na janela pra sentir aquele cheiro, e podia ficar muito tempo sentindo. Na mesma linha, o cheiro de motor dois tempos, com a sua mistura diferenciada, ainda me faz virar a cabeça (o barulho também é outro). Mas hoje não posso mais com posto de gasolina, não suporto. Diesel eu detesto.
2. Oficina de marcenaria - um clássico. Creio que na realidade esse cheiro faz parte de um cluster olfativo, em que poderíamos agrupar todas as possibilidades que a madeira pode dar - e são infinitas. Por isso, separo as minhas preferidas abaixo:
quinta-feira, 29 de maio de 2008
domingo, 18 de maio de 2008
Se já estamos na primavera
Errado.
Deveria ser assim, mas não vai estar sendo – diria a operadora de telemarketing.
Ai, lá vai o Daniel criticar de novo, reclamar, que rabugento. Esse menino tá ficando velho demais, vão dizer. Não, muito ao contrário. Meus sentidos estão aguçadíssimos e meu espírito cheio de desejos. E é precisamente por essa razão que fico indignado quando abro a janela do meu apartamento num início de tarde de domingo em pleno Maio apenas pra constatar que lá fora está mesmo frio e úmido. Que o sol não brilha, pra isso não preciso abrir a janela pra conferir. Mas frio? Que chova, ok, aqui ainda é Wuppertal, mas frio? É alguma piada? Ou realmente nossos preconceitos estão se mostrando fundamentados e se transformam em polar realidade? Polar é exagero, mas 13 graus não é nenhum clima primaveril, ainda mais antes das duas da tarde.
Existe a idéia de que a gente é que faz o clima, usando a força do pensamento e da vontade. Cansei de ler em montes de livros e artigos autores que, de maneiras diferentes, seja por meio da meditação zen ou shivaísta, transcedental ou não, seja através da imposição do pensamento ou da neurolinguística, do respiracionismo ou da dieta das cinco luas, enfim, seja como for, encontra-se a panacéia para as dores do humor. Não que desacredite, muito ao contrário, eu que sou adepto da prática da meditação e vejo no zen e no taoísmo duas das melhores formas de se entender a grande questão da existência. Mas talvez não tenha ainda, nesses anos, atingido o grau de desprendimento necessário para ver o céu azul e tomar um banho de sol quando o dia está londrino. Com muito esforço e apenas nas condições de temperatura e pressão ditas ótimas - seja sobre um tapete de pêlo felpudo (que não coce o nariz) diante de uma lareira tomando um vinhozinho bem acompanhado, seja lendo George Steiner enfiado numa maçaroca de edredons e travesseiros cheirosos com mãos macias massageando meus pés enquanto as gotas da chuva pintam de abstrato a realidade estampada no vidro da janela, sou apto a dizer que o dia está BOM. Dependendo da companhia, o dia pode chegar mesmo a estar ÓTIMO, até MARAVILHOSO, desde que não precise sair para comprar cebolas no mercado ou trocar o pneu do carro na viagem de volta.
Vão me apedrejar, dizer que eu sou um Zé-Limão, que sou um cara amargo que não consegue tirar prazer da vida. Não se engane, eu não estou dizendo isso. Não critico o criador por ter inventado a chuva ou o inverno, eu que sou romanticamente apreciador das intempéries, sinto o coração disparar quando assisto uma tempestade, passo horas (horas?) apenas olhando o vento despenteando as árvores e roubando as folhas, me enterneço vendo a neve cair e acho que a chuva quando cai limpa o ar e renova tudo que está plantado, inclusive os edifícios e algumas pessoas. O que eu sem dúvida desaprovo, e se fosse pra notificar o responsável eu seria voluntário, é a desorganização que ora se apresenta. Que faça frio no inverno, sim, ótimo, comeremos fondue, tomaremos vinho, os que ainda podemos. Que chova forte e grosso no verão, alguns dias no inverno (prefiro a neve), por que eu amo o verde das folhas (mesmo que de vez enquando só haja por aqui o marrom acinzentado dos troncos e galhos desfolhados). Mas na primavera, não pode fazer esse frio tosco. Olha, é culpa da globalização. Só podemos chegar a uma sábia conclusão, e eu repito até ser ouvido: o mundo vai acabar.
Ora, enquanto eu escrevo isso, olho pela janela e vejo que devagar o tempo melhora.
quarta-feira, 7 de maio de 2008
DRITTE WELT NEVER DIE
Eu vou fazer uma camiseta: "Me Dritte Welt, Me no Complikat". Putz, quem pensa que ah, aqui é primeiro mundo, tudo funciona que é uma beleza! - funciona em termos, vamos e venhamos. Por exemplo. A TV. Por que aqui não é que nem em Piraporinha, fulano compra uma TV nas Casas Bahias, bota no lombo do passatão, alegra a muié e os menino ligando a bicha na tomada e plim-plim, tá lá o gordo do domingo. Se não pega bem, taca um bombril nas antenas e beleza, globo e você tudo a ver.
Não, dona madame, aqui não é assim não. Aqui é primeiro mundo, a senhora tá situada?
Primeiro, lá vai o Daniel com uma tevezinha (emprestada) pra casa, todo pimpão assistir o canal Arte, que ele é muito sabido e artístico. Ou o History Channel, por que ele também é histórico pacas. Muito que bem. Bota a tevê na mesinha (emprestada) e plict, liga. Nada. Diabo de controle, vai ver é isso. Leva o controle, troca a pilha, liga, nada. Bota antena, tira antena, desmonta a tomada da antena, remonta a tomada da antena, liga, nada. Ufs. Leva a tevê na casa do broder, vai que é o cabo né? É. É o cabo. Vai ver que tá morto. Bora tentar outra coisa. OK, vamos dar uma de hacker malandro pracarái. Sisteminha esperto, liga antena no computador, faz rastreamento, puxa pra lá, roda o programa, puxa pra cá, desliga, liga. Nada.
Ai.
Ok, ligar pra administradora (a mesma que não resolveu o problema do forno e agora eu cozinho num fogãozinho de acampamento de escoteiro). Oi dona Breitsprecher, como vai a senhora, tal e tal a tevê assim assim e coisa. Aham, aham, não funciona. Ah. Contrato com a empresa tal né. Ok. A mulher manda o contrato. Não tem o preço. Afs... procura na internet, epa! Uma empresa tem cabo na minha rua, é baratinho, manda o equipamento e simsalabim, teremos TV! Toca contratar, dois meses de graça que maravilha essa Alemanha é mesmo um país civilizado, que coisa magnífica. Vem o aparelhinho, uma semana depois. Moleza né? Só plugar os cabos. Ah, mas esse cabo, que cabo é esse? Não tem entrada pra ISSO na TV. Vamos no manual, o trem chama Scart Kabel. Ah, mas veja, vivendo e aprendendo né? Um cabão diferente, onde é que eu vou achar? No broder, ele sempre tem uns cabos. Certo, trago os cabos. Não funciona, a tela continua azulona. Levo os cabos de volta. Ah, é por que o cabo tem inda e vinda, tem que levar outro cabo. Tá, bota o cabo lá, liga, maravilha, agora tem umas coisas aparecendo. Bacana. Tá escritinho bem bonito: Signal Stärke = 0%. Não tem sinal. Trocar os cabos, destrocar, fazer scan dos canais, desligar, ligar de novo. Nada, canal nenhum.
Ai.
Telefonar pra empresa (a € 14 cents por minuto, que aqui todo SAC é pago), olha moço, a minha TV assim assim, não funciona, tal e coisa. Ah, ok, manda um novo aparelhinho. Mandou, peguei 10 dias depois quando voltei da itália (nesse prazo já perdi o direito de devolução do contrato, que agora rola por 2 anos). Liga o negocinho (que é só outra fonte AC). Igual, não funciona.
Ai.
Liga na empresa, não tá funcionando. Ah, aqui é a empresa de aparelhinho, o senhor tem que ligar na empresa de TV. Liga na empresa de TV (a €14 cents/min), assim assim isso e aquilo, ah o senhor tem que ligar na empresa que instala cabos de antena (que vem a ser a primeira empresa da lista). Liga na empresa de antena. Ah, mas o senhor tem é que ligar na empresa de TV.
Socorro.
Meu alemão não é tão elástico, preciso de alguém que vá além da palavra "Schuchtern" ou de "Schallplattenfachgeschäft", arrego e peço pro broder. Ele liga na TV. A TV manda ligar na empresa de antena. A empresa de antena explica dessa vez: o senhor precisa contratar um serviço de cabo pra fazer funcionar o cabo da sua antena pra fazer funcionar o trubisquinho que faz funcionar a sua TV. Quanto? € 18,00 mensais (era € 3,90 só a TV). Ah. E por 2 anos, como tudo.
Agora tenho uma TV que não funciona, com um receiver que não funciona, ligados a uma antena que não funciona, pago € 3,90 pra nada e nada vai sair desse ponto se eu não pagar mais € 18,00 que não estavam escritos em lugar nenhum. Fora os € 14 cents por minuto de cada ligação pros SACS. E pareceu rápido aqui né? Mas levou meses - cada carregada de TV pra lá e pra cá precisa de um carro ou um trem - e não a bicicreta vremeia que eu tenho...
Isso, meus amigos. Da próxima vez que for reclamar e dizer ah, mas é por que aqui é terceiro mundo, por que se fosse na Oropa isso não era assim, por que na Oropa funciona, por que na Oropa isso, que na Oropa aquilo. Fica quieto e assiste o gordo do domingo feliz comendo paçoca, que rapadura é doce mas não é mole.
ME DRITTE WELT! BOMBRIL NA ANTENA FOR EVER!
quinta-feira, 1 de maio de 2008
Sole Mio
Existem uns lugares no mundo que são tão absolutamente eles, que não há nada que se possa comparar. Os Jardins da Babilônia, a Acrópole, o Coliseu, Karnak, Ur, em cada um desses lugares a gente se encontra numa atmosfera fora do nosso tempo e da nossa realidade. Mas ainda nesses lugares, basta andar alguns metros e já se está de volta ao mundo cotidiano. Em Veneza, eu descobri algo diferente. Não adianta andar alguns metros, por que o cenário é a cidade inteira. Você vai caminhar quilômetros por ruazinhas ou navegar pelos canais e estar sempre respirando um ar de quem parou no tempo. Não vou entrar em detalhes sobre minha viagem por Verona e Veneza, nem tampouco sobre a história de cada lugar, Sheakespeare já falou melhor a respeito e não sou eu quem vai se meter a besta de enveredar por campos onde já passaram Romeu e Julieta e O Mercador. Quem tiver interesse, busque na imensa nuvem eletrônica, que tem informações pra afogar qualquer vivente.
Melhor que isso, mostro algumas das fotos que fiz. Há muitas outras, mas fazer upload aqui no Blog é muito difícil, demora muito. Quem tiver conta no Orkut ou no Facebook pode olhar os álbuns que fiz. Quem não tiver pede emprestado ou espera um dia me encontrar que eu mostro. Simply not in the mood.
Il Borghetto (cercanias de Verona - melhor Tortellini da Itália):
Verona:
(essas últimas três também, feitas pelo Guito.)
Bom, eu sempre recomendo. Itália vale a pena, comida boa, bebida boa, clima delicioso.
Outro dia, que não for Do Trabalho, eu conto mais. Disso, quem sabe, e de outras coisas. Fui.
sexta-feira, 18 de abril de 2008
sábado, 12 de abril de 2008
OK, não vou mais.
E nem queria.
Aos jogos, sim, que me apraz assaz veraz o desporto - espicaça a mente e estimula o espírito, afora os benfazejos resultados no corpo.
Mas não vou mais à China esse ano. E nem nos próximos, a não ser que seja pra protestar. Contra um monte de coisas. Contra as violações dos Direitos Humanos, contra a censura, contra a atitude chinesa no mercado mundial, contra o Unipartidarismo, contra as restrições no Tibet.
Sou um Plutocrata Pragmata, só acredito na liberdade. Sou um iconoclasta, não vou atrás de histórias da carochinha de governo nem partido nenhum.
Estou deliberada e assertivamente boicotando os Jogos Olímpicos de Beijing. Eles que se cocem. E se quiserem mais, é só pedir, que eu sou pau pra toda obra. Se a tocha vier pra Wuppertal, eu apago (olha que se bobear eu vou lá apagar ela em outro lugar que ela passar também).
Sim, sim, a gente tem problemas do mesmo gênero ou parecidos aqui (aí) na Latinamérica, um monte de gente doente e passando fome, que não sabe escrever, censura nos nossos hermanos (no Brasil não? cadê o documentário "Cidadão Kane", sobre Roberto Marinho, que eu só vejo no submundo em cópias piratas?). Mas tudo faz parte da mesma realidade, é uma questão de princípio. E isso eu não vou jogar fora, por que não achei no lixo (e olha que eu encontro muita coisa útil e bonita no lixo).
Quanta burrice existe no mundo. Ora, faça-me o favor.
PS: (ouça mais música).
segunda-feira, 7 de abril de 2008
Então eu pisaria descalço no capacho da entrada da minha casa de manhã e ouviria de repente o zunido do vento passando por debaixo dos pés enquanto ele, capacho voador, me levaria pela janela entreaberta da escada do edifício. Passaríamos por cima do jardim, dos trilhos de trem, da fábrica de aspirina, por cima da Friedrich-Ebert Strasse e subindo mais, o outro lado do vale. Eu voaria por cima da Alemanha e da França, espantaria os camponeses do século vinte e um na Normandia, e por cima do Oceano Atlântico, entraria como um relâmpago pelas nuvens de tempestade e sombrearia pontual os Caboverdeanos, os Madeirenses, as baleias, os monstros marinhos, os japoneses escondidos, até ver a beira mansa duma praia brasileira, meu nariz cheio de ar salgado e cheiro de peixe e de gaivotas. Meu capacho voador riscaria o céu da Serra do Mar e flutuaria até a janela do seu apartamento, por onde eu entraria e te veria pelo espelho do quarto, os olhos enormes de susto e prazer.